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29 de março de 2024 | 6:51
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A mancha

Rui Flávio Chúfalo Guião *  
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Confortavelmente sentado na cama, apoiado em grandes  almofadões, o homem lia seu livro, como costumava fazer todas as noites, antes de dormir. Focado no conteúdo da obra, sem querer, olhou para o chão e notou a pequena mancha negra, redonda, destacando-se do piso branco. Não deu muito importância, mas, de vez em quando desviava o olhar do livro para se perguntar o que seria o pequeno círculo negro. Numa destas olhadas, teve a sensação de que o círculo aumentava devagar.  
 
Parou a leitura e percebeu, curioso, que o círculo se expandia e, de vez em quando, pulsava. Levantou-se, dirigiu-se à agora grande mancha, pisou sobre ela e foi tragado. Atravessou um fosso estreito e fundo, com cheiro de terra e caiu, caiu até ser colocado, incólume, num espaço grande, um oco com várias raízes de árvores. Nelas, havia alguns cogumelos, pequenos rizomas, um arremedo de folhas e um anúncio em neon: Boscdes Fades. Uma música longínqua parecia sair de algum lugar distante. Apareceram fadas, pequenas, com asas transparentes, que borboleteavam em seu redor, piscando como vagalumes. 
 
A grande porta de madeira chamou sua atenção, abriu-a e penetrou numa grande biblioteca, onde seres humanos pequenos ocupavam o lugar dos livros. Havia a seção de história, majoritariamente formada por pequenos homens, enquanto o setor de artes tinha mais mulheres em suas fileiras.Livrões com braços e pernas, pegavam os pequenos humanos e os colocavam em mesas espalhadas pelo local. Quando tocados, cada humano narrava sua  estória, que era ouvida com atenção. Alguns declamavam poesia e enchiam o ambiente com pensamentos bonitos, ideias românticas, palavras bem colocadas. Outros representavam a grande comédia e o grande drama das peças teatrais. 
 
Sem saber como, atravessou a densa parede e penetrou numa fábrica branca, limpa, asséptica, onde vários homens e mulheres, de avental branco alvíssimo, manipulavam instrumentos de um grande laboratório. “ Não sabem o que aqui fazemos” – disse o mais velho de todos. “Bombas para acabar com a humanidade”, respondeu o mais novo e continuaram sua faina de pesquisas. 
 
De repente, surge um menino loiro, de olhos claros, que lhe oferece a mão, imediatamente se transformando num jovem negro, ebúrneo. Leva-o para uma grande planície, com vegetação baixa e cheia de flores, abelhas zunindo, pássaros cantando. “ É o paraíso que querem destruir”, entende numa língua desconhecida. Folhas caem das árvores, levadas pelo vento, vento tão forte que o arrebata e o lança aos céus. Lá, se encontra com um bando de pássaros migrantes e, como que por milagre, vê nascerem asas em seu corpo e voa suavemente como seus companheiros. 
 
Voando, vê sua cidade surgir no horizonte, ao nascer do sol. “- Será que a ela voltarei?”, pensa em voz alta, enquanto o bando inicia uma subida que o distancia cada vez mais da terra. Nisso, surge um grande avião prateado que se aproxima. Estica as mãos e consegue se agarrar no leme da aeronave e é por ela arrastado em direção ao aeroporto, que já aparece. No solo, torna-se mais um passageiro que desembarca, dirige-se ao portão das chegadas e nota uma multidão com faixas e cartazes, que grita eufórica seu nome. Não se lembra da razão da homenagem, mas fica feliz pela bela recepção. Abre os braços e se deixa envolver pelos que o aplaudem, que vão se acercando, acercando, causando-lhe uma sensação claustrofóbica que procura evitar, em vão.  
 
Sente o ar se esvair, uma sensação de morte e acorda assustado, o livro caído na cama, os óculos no chão... 
 
* Presidente do Conselho da Santa Emília Automóveis e membro da Academia Ribeirãopretana de Letras 

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