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28 de março de 2024 | 15:59
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‘A máquina de xadrez’, de Robert Löhr

O xadrez, antigo jogo dos reis, reclama técnica para que se consiga criar boas estratégias e boas táticas. Exercício para a mente, formador de uma diferenciada percepção matemática, era, nas palavras de Goethe, “a ginástica da inteligência”. Enxadrista, Goethe dele fez seu mote já no primeiro de seus romances. E não nos surpreende ao saber que, no mesmo, do xadrez se utilizou para vencer seus próprios demônios.

Robert Löhr, jornalista alemão, em sua obra de estreia na literatura, “A Máquina de Xadrez”, conta-nos a história de um lendário invento: o autômato, boneco articulado a corda, vestido como um turco, e pretensamente inteligente, que encantou a Europa. O ano? 1770. O fato? O barão Wolfgang von Kempelen, aventureiro e livre-pensador, tentando conquistar o favor da imperatriz austríaca Maria Teresa, apresentou-lhe, em Viena, o engenhoso invento, capaz de derrotar os melhores jogadores de xadrez do mundo. O truque? No interior da máquina, um verdadeiro prodígio mecânico, esconde-se o anão Tibor, exímio jogador de xadrez que, resgatado por Kempelen dos calabouços de Veneza, viu-se forçado a participar daquele embuste. Depressa o “Turco” se torna famoso por toda a Europa, até que, nas celebrações do casamento de Maria Antonieta e Luís XVI, uma baronesa é encontrada misteriosamente morta. O suspeito? Turco, que tanto suscitou inveja quanto perseguição eclesiástica e complexas intrigas palacianas. Um trecho?

“Neuenburg, 1783. No caminho de Viena para Paris, Wolfgang von Kempelen parou com sua família em Neuenburg e, em 11 de março de 1783, apresentou na hospedaria da praça do mercado seu legendário autômato do xadrez, um andróide em trajes turcos que dominava a arte do xadrez. Os suíços não haviam preparado nenhuma recepção calorosa para Kempelen. Afinal, os construtores de autômatos do principado de Neuenburg eram tidos como os melhores do mundo. Eis que aparecia um conselheiro real da província húngara – um reles funcionário para quem a relojoaria não era um ganha-pão, mas passatempo – que tinha conseguido ensinar o seu autômato a pensar. Uma máquina inteligente. Um aparelho feito de molas, rodas, cabos e rolos, que havia derrotado praticamente todos os seus adversários humanos no jogo dos reis. Em comparação com a extraordinária máquina de xadrez de Kempelen, os autômatos de Neuenburg não passavam de enormes caixinhas de música, um divertimento trivial para nobres muito ricos.

Apesar de todo o ressentimento, os ingressos para a apresentação do autômato do xadrez se esgotaram. Quem não tinha conseguido um lugar sentado teve de assistir de pé, atrás das fileiras de cadeiras. Os cidadãos de Neuenburg queriam ver como funcionava aquela maravilha da técnica, desejando no íntimo que Kempelen fosse um impostor, e que a invenção mais brilhante do século se revelasse, sob os seus olha- res atentos, um simples truque de prestidigitação. Mas Kempelen frustrou suas esperanças. Quando, no início da apresentação, com um sorriso autoconfiante, mostrou o interior do aparelho, só o que apareceu foram engrenagens; e, quando deu corda nas engrenagens e o turco do xadrez começou a jogar, ele o fez com os inconfundíveis movimentos de uma máquina. Os patriotas locais tiveram de reconhecer que Kempelen não era nada menos do que um gênio da mecânica.

O turco derrotou seus dois primeiros oponentes, o prefeito e o presidente do salão de xadrez de Neuenburg, em um espaço de tempo vergonhosamente curto. Kempelen solicitou então um voluntário para a terceira e última partida do dia. Passaram-se alguns instantes até que finalmente alguém se apresentou. Kempelen e seu público procuraram pelo voluntário, mas só foi possível vê-lo quando ele saiu do corredor formado pelos espectadores que haviam recuado: o homem era tão baixinho que mal batia na altura dos quadris dos presentes. Wolfgang von Kempelen recuou um passo e apoiou uma das mãos na mesa de xadrez. Visivelmente, a visão do anão o assustara, e ele empalideceu, como se estivesse diante de um fantasma.

Gottfried Neumann – assim se chamava o anão – também era relojoeiro e viajara da vizinha La Chaux-de-Fonds a Neuenburg especialmente para ver o autômato do xadrez jogar. O anão tinha cabelos pretos com algumas mechas grisalhas, presos na nuca em uma trança prussiana. Seus olhos castanhos eram iguais aos do turco do xadrez. Seu olhar era penetrante. As rugas na sua testa pareciam estar ali por obra da natureza, e as sobrancelhas pretas pareciam estar franzidas sobre os olhos desde o seu nascimento. Ele tinha a estatura de um menino de seis anos, mas era visivelmente mais forte; como se houvesse muito corpo para pouca pele. Ele trajava um justaucorps verde-escuro, feito sob medida, e um lenço de seda em volta do pescoço.

Sussurros encheram o salão quando Neumann foi ao encontro de Kempelen. Ninguém no público jamais tinha visto Neumann jogar xadrez. O presidente do salão de xadrez solicitou outros voluntários, que fossem reconhecidos como bons jogadores, e que talvez pudessem se esforçar por um empate com o autômato. Mas ele se calou com as vaias da platéia. O turco se revelara imbatível – mas o jogo entre uma máquina e um anão era algo que, no mínimo, valia a pena ser visto.

Kempelen não ajeitou a cadeira para o pequeno relojoeiro, como fizera para os jogadores que o antecederam. Como eles, Neumann sentou- se em uma mesa separada, com um tabuleiro separado, para permitir que o público visse o turco. Kempelen esperou que o anão se sentasse, pigarreou e pediu silêncio e atenção. Neumann contemplou o tabuleiro e as dezesseis figuras vermelhas à sua frente como se jamais tivesse visto algo semelhante, os ombros levantados e as palmas das mãos, como uma criança, apertadas contra o assento.

O assistente de Kempelen deu corda no autômato do xadrez com o auxílio de uma manivela e o mecanismo colocou-se em movimento com um rangido. O turco levantou a cabeça, moveu o braço sobre o tabuleiro e, com três dedos, colocou um peão no meio – da mesma forma como iniciara as partidas anteriores. O assistente repetiu o lance no tabuleiro de Neumann, mas o anão não reagiu. Ele nem ao menos levantou o olhar. Seguia olhando embasbacado para cada uma das suas figuras, como se fossem conhecidos que ele julgava mortos há muito tempo. O público ficou inquieto.

Wolfgang von Kempelen já ia dizer alguma coisa, quando, finalmente, Neumann se mexeu. Ele moveu seu peão do rei duas casas para frente, desafiando assim o peão branco.”

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