30 C
Ribeirão Preto
19 de abril de 2024 | 15:09
Jornal Tribuna Ribeirão
Início » A parte do todo
Artigos

A parte do todo

Sérgio Roxo da Fonseca *
[email protected]

Nos dias comuns, não encontramos dificuldade para identificar a diferença entre o que é a parte de um todo, como quando estamos olhando para a fatia de um pão, tendo na memória o desenho do pão inteiro.

Mas, em momentos importantíssimos da existência a parte cresce para fora do desenho, jogando para o esquecimento ou para a inutilidade o desenho do pão inteiro. Então convocamos a parte para esmagar o todo, como se o hipotético erro fosse o principal alvo do nosso desejo.

No início da minha juventude estive cursando um colégio interno, onde recebi uma orientação que punha abaixo minhas frágeis convicções. Uma das pessoas mais relevantes da minha família era excomungada. O sábio Padre Luís de Abreu era um dos meus professores. Procurei o seu socorro.

Contei-lhe o motivo da minha preocupação. Eu mesmo rezava para Deus, pedindo-lhe que entre passar a eternidade ao lado de sua divina pessoa, queria que após a minha morte fosse a minha alma empurrada para o inferno de Lúcifer para que pudesse permanecer ao lado do parente excomungado. Os fatos tinham como cenário o ano de 1950.

O Padre Luís de Abreu esclareceu que os excomungados não iam para o inferno. Segundo sua visão, o Cristo havia derramado seu sangue no calvário para salvar tanto os santos como os pecadores das penas aplicadas ao pecado de Adão e Eva.

A humanidade não foi coautora do pecado original. O sangue de Cristo teria sido derramado para salvar apenas aquela parte do universo que no ano zero vivia ao seu lado? Ou, ao contrário, a sua crucificação teria salvado os que vieram antes e os que chegaram depois do seu calvário?

O Padre Luís de Abreu tentou abrir meus olhos para a universalidade da existência, marca registrada de todos aqueles, que já tinham vivido e dos outros mais que vieram depois de Cristo como parte da existência da história humana.

Se bem me lembro daquela extraordinária lição, na época havia uma distinção gravíssima entre os homens. Os adversários não eram adversários, mas, sim, inimigos. Naquele ano, por exemplo, os católicos instituíram uma entidade denominada LEC – Liga Eleitoral Católica com o objetivo de manter o poder político dirigido pela sua visão parcial: católico que era católico tinha o dever de votar nos católicos indicados pela LEC.

Nos nossos dias, os católicos não vibram mais essa visão religiosa como instrumento do poder político. Reversamente, outras entidades religiosas, às claras, descem dos seus altares para galgar os degraus do poder político, vibrando acima de tudo e de todos sua tradição religiosa. Misturam a religião com a política, proferindo em todos os cantos uma hipotética condenação infernal aos seus adversários, que, para eles,figuram como inimigos. Eis aqui a substituição do todo pela parte.

É necessário lembrar que, pelo menos no Brasil, com todos os seus conhecidos problemas, até ontem não testemunhamos choques entre nacionalidades, entre visões culturais e até mesmo entre inspirações religiosas. Aqui até os italianos, os árabes, os alemães, os judeus, os franceses, e, até os brasileiros, vivem em paz. Ou seja, a sua naturalidade não os levam à guerra ou à discórdia. Suas culturas não são instrumento de morte. Seguramente esta é uma das razões fundamentais para a unidade territorial do Brasil, uma dos maiores países do mundo.

Segundo as sábias e inesquecíveis lições do Padre Luís de Abreu, apregoadas no longínquo ano de 1950, o sangue de Cristo foi derramado para salvar todos os homens justos e pecadores, nunca apenas para salvar uma parte inexistente de um todo indivisível.

* Advogado, procurador de Justiça e professor livre-docente aposentado e membro da Academia Ribeirãopretana de Letras

Mais notícias