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29 de março de 2024 | 9:10
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Asco e escracho

Supunha que o vocábulo “escracho” tivesse sido abolido para sempre da nossa linguagem. Se abolido, agora ressuscitou com toda a força na boca de autoridades que, publicamente, antes da acusação e da condenação, invadiram a minha TV com objetivo de “escrachar” o seu réu. A palavra tem raiz imemorial. “Escrachar ”vem de “escarrar”.

Em 1964, os universitários de Ribeirão Preto distribuíram um panfleto exigindo respeito à decisão do Supremo Tribunal Federal que reconhecia o direito à liberdade do governador Miguel Arraes. O estudante Sidney Torrecilhas foi preso em flagrante, acusado de cometer crime contra a segurança nacional por defender a legalidade de uma decisão do Supremo Tribunal Federal.

O Sidney havia sido meu colega de classe no curso ginasial. Indicou meu nome para defendê-lo. Foi o único crime praticado contra a segurança nacional julgado em Ribeirão Preto. Depois, a competência para tais julgamentos foi arrastada para as auditorias militares de São Paulo. Arrastar competências…

Ajuizei um “habeas corpus” que foi negado porque o panfleto do estudante também absurdamente defendia crimes e criminosos. Onde a Segurança Nacional?

O Fórum de Justiça ficava a cem metros da cadeia. No dia da audiência, de lá veio a pé o Sidney algemado, cercado por dois policiais. O nosso antigo professor de história, Dr.Romero Barbosa, que por ali passava, exigiu dos policiais que retirassem imediatamente as algemas de seu ex-aluno. A lembrança causa-me grande emoção até hoje. As algemas foram prontamente retiradas. O doutor Romero Barbosa acompanhou o Sidney até o Fórum e gravemente relatou o fato ao juiz do feito. Dias depois, o Dr. Dácio Franco do Amaral absolveu o Sidney. Não havia crime nenhum.

Abro agora (dia 17/11/2017) os jornais de Ribeirão Preto e vejo uma fotografia enorme do ex-secretário da Administração da Prefeitura Municipal algemado, tanto nas mãos quanto nos pés, vestindo um macacão vermelho de presidiário, sendo conduzido para a sala de audiência.O macacão e as algemas do secretário daqui contrastam vivamente com o paletó e a gravata do empresário José Maria Marim ao dirigir-se ao Fórum de Nova York, para ouvir os artigos de sua acusação.

Pudera o secretário foi publicamente “escrachado”? Os seus familiares foram atingidos pelos respingos do “escracho”? A reiteração de fatos semelhantes lembra a condenação de Tiradentes, extensiva a seus descendentes até a quarta geração. A nossa tradição é ainda bem diferente daquela empregada em Nova York, mas já não pune até a quarta geração.

Envolvido no mesmo processo, há um ano, o empresário Marcelo Plastino matou-se, disparando um tiro nas têmporas. Em Florianópolis, o Professor Luiz Carlos Cancellier, depois de ser preso e desnudado por autoridades, matou-se negando-se a viver nesta suposta liberdade. Conheço os dignos Promotores e o eminente Juiz de Direito envolvidos no rumoroso processo ribeirão-pretano. Submeto-me ao seu profissionalismo e sob a dimensão humana de seus atos.

Em contrapartida, não conheço pessoalmente as pessoas envolvidas no processo atual. Mas, com certeza, convivia com elas e com seus familiares na tão brava e leal cidade de São Sebastião de Ribeirão Preto, caminhando insistentemente por estas mesmas ruas, as de hoje e como as de ontem, que conformam a memória da minha vida, por onde, muitas vezes, ainda me encontro com a imagem do professor Romero Barbosa.

Como seria bom que ele voltasse do mundo dos meus sonhos e das minhas lembranças para novamente engrandecer a paz e a Justiça com o histórico gesto em defesa do então estudante Sidnei Torrecilhas, com o histórico e heroico gesto realizado em favor da liberdade e da humanidade!

Na última cena do filme “Acossado”, Godard coloca na boca da atriz que testemunha a morte do namorado a seguinte pergunta: “O que é asco”?

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