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18 de abril de 2024 | 20:49
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Dois olhares

A família de Gugu Liberato teve o nobre gesto de doar os órgãos do apresentador, um desejo dele próprio, e segundo foi noticiado, aproximadamente 50 pessoas serão benefi­ciadas. Fiquei imaginando o que geraria tamanha oferta do nosso corpo, o que seria retirado para ajudar tantas pessoas necessitadas?

Vivi situação parecida e já escrevi sobre este fato faz mais de dez anos. Meu filho Lucas Bueno teve que partir após so­frer um acidente automobilístico quando vinha de São Carlos para Ribeirão Preto. Tentamos doar o que fosse possível de seu corpo. Fez 14 anos no último dia 17 de agosto.

Lucas, então com 26 anos, não fumava e não bebia, portanto, imagino o quanto dele poderia ser útil para quem aguardava na fila do transplante de órgãos – acho que os dele eram perfeitos. Porém, o fato de o acidente ter ocorrido em uma rodovia, longe de um hospital onde os procedimentos são instantâneos, dificultou a doação.

Somente suas córneas foram retiradas. Com elas, duas pessoas que nada podiam ver voltaram a apreciar o nascer e o pôr do Sol, coisa linda que a natureza nos oferece de graça e que muitos não percebem. As fases da lua, a beleza das flores, enfim, o mundo ao redor.

Nem sei quantas vezes o saudoso e querido amigo Wilson Toni me ligou perguntando se a equipe do Hospital das Clinicas de Ribeirão Preto havia chegado ao local do acidente. Eu e minha esposa ali, ao lado do corpo do nosso filho, coberto com alguma coisa que não me lembro o que era, esperávamos pela ordem da autoridade policial para a remoção do corpo, que seguiria para Santa Lúcia, depois para Araraquara. Essa longa espera, a cena do acidente, tudo aquilo pra nós foi muito doloroso.

O corpo do Lucas permaneceu na grama, além do acos­tamento, por várias horas. Ninguém pode imaginar o que passou pelo meu peito, o peito de um pai que ali, ao lado do filho, via passar em sua cabeça um filme retratando toda sua trajetória como policial rodoviário, que perdeu a conta de quantas vidas ajudou a salvar em acidentes como este que vitimou o filho.

Questionava a mim mesmo, olhando para o Lucas ali, por­que não consegui salvá-lo? Porque não cheguei antes de seu carro bater com o caminhão? Essas respostas feitas para mim mesmo ali, em silêncio, só pude obter com as mensagens psicografadas enviadas por ele, esclarecendo tudo. Ele sempre repetia: “Pai, tinha que ser assim”.

O acidente foi em agosto, e sabia que duas pessoas vol­taram a ver o mundo com um pedacinho do meu filho. Em dezembro, recebemos um convite do Banco de Olhos do Hos­pital das Clinicas para uma missa a ser realizada no Santuário Nossa Senhora Aparecida, para as famílias de doadores.

Eu e minha esposa fomos, a igreja estava superlotada, e nós não conhecíamos ninguém. Na entrada havia um enorme banner com os nomes dos doadores, em ordem alfabética. A letra “L” de Lucas estava lá em baixo. Choramos muito, cada mãe recebeu uma rosa, descobrimos que o público presente era de receptores e famílias doadoras do Brasil inteiro.

Forte emoção o tempo todo. De repente, uma linda jovem foi ao microfone e leu um texto sobre a importância da doa­ção de órgãos. No final ela disse que até seis meses atrás nada enxergava e estava ali lendo aquele texto graças a família de um motociclista que faleceu ao sofrer um acidente de moto, na Via Norte, aqui em Ribeirão Preto.

Para onde a gente olhava, todos estavam enxugando lágrimas, eram lágrimas de tipo “foi a vontade de Deus”. Este trabalho maravilhoso do Hospital das Clinicas, que até então eu nem sabia que existia, continua para o conforto de muitas famílias. A vida segue e quem sabe eu já tenha cruzado com os olhos de Lucas por aí? Quem sabe?

Sexta conto mais.

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