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29 de março de 2024 | 2:32
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Prender para investigar

O nosso Código Penal teve seu projeto preparado por Alcântara Machado e finalmente revisto pela Comissão nomeada pelo então ditador Getúlio Vargas, composta pelos mais famosos juristas do Brasil, a saber: Nelson Hungria, Roberto Lira, Vieira Braga e Narcé­lio de Queirós.

Tive convivência com Roberto Lira. Tendo em conta a riqueza cultural de Roberto Lira, promotor de Justiça, Ministro da Educação, seus trabalhos exerceram forte influência no mundo jurídico. Não só exerceu as funções próprias dos membros do Ministério Público, como também foi professor e escritor. Lutou pela modernização do nosso sistema penitenciário.

Era positivista e democrata. Relatava aos amigos episódios de sua imensa atividade, especialmente ao se referir a fatos marcantes da época em que desenvolveu sua atividade na redação de nossa legislação penal. Lembro-me de duas delas.

Contra a orientação de todos os membros da Comissão Revisora, o ditador Getúlio Vargas, que também era formado em letras jurídi­cas, exigia que se incluísse na legislação brasileira a pena de morte.

Os juristas comunicaram a Getúlio que nenhum deles aprovava a inserção da pena de morte no direito positivo brasileiro.

Getúlio Vargas, invocando os poderes que a ditadura lhe con­cedia,contrariou os juristas, determinando a aprovação da pena de morte, comunicando então que, se não a acolhessem, deveriam imediatamente pedir demissão.

Ao lado de Getúlio estava sua filha que surpreendentemente con­trariou seu pai, afirmando que a instalação da pena de morte na legis­lação seria uma vergonha para o Brasil e para o governo brasileiro.

O ditador, não demonstrando um pingo de emoção, dirigiu-se ao grupo de juristas, ordenando que acolhessem a opinião de sua filha. A opinião de sua filha merecia o seu respeito, colocando-se em posição mais destacada que a orientação dos juristas notáveis!

A pena de morte, portanto, não manchou a convivência brasi­leira não pela opinião unânime dos mais notáveis juristas da época, mas, sim, para impor a opinião desassombrada da filha do ditador da época. Como se observa, desde sempre a opinião dos detentores do poder é iluminada pela opinião de seus filhos…

Em outra passagem Roberto Lira narrou que desenvolveu grande trabalho contra a “prisão preventiva”, o que lhe parecia ser uma ig­nomínia. Destacava que aquele regime normativo havia sido copiado da legislação fascista do governo italiano liderado por Mussolini.

O grande mestre Roberto Lira sustentava que o Estado não podia e nem devia “prender para investigar”. Ao contrário, sob um regime democrático, cabia ao Estado inverter a regra, organizando seus serviços no sentido de “investigar para prender”. “Prender para in­vestigar” é marca registrada de regimes ditatoriais que não ocultam a sua genética fascista.

Nos nossos dias, percebo que o endurecimento do sistema jurí­dico petrifica as relações jurídicas, dando as costas até mesmo para a legislação em vigor, infelizmente com acolhimento realizado pelos nossos órgãos julgadores.

Inicia-se, nestes novo-velhos tempos, a investigação penal com a prisão do suspeito, muitas vezes acompanhada de seus familiares, com a apreensão de objetos que guarnecem o seu lar e a sua intimi­dade. Sejam eles culpados ou não! Depois pode ser apurado! Os atos preliminares por si só mancham pela eternidade a vida do suspeito e de seus parentes. Nem mesmo uma última sentença absolutória tem o poder de recolocá-los no seu estado anterior. Prende-se muito para investigar e não se investiga para prender.

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