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28 de março de 2024 | 7:30
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Proust e o sorveteiro

O homem voltou cansado para sua casa, encontrando sua mãe que lhe ofereceu uma xícara de chá com biscoitos. O sabor do primeiro gole restaurou os acontecimentos perdidos de sua infância, supostamente assassinados pelo tempo. Saiu ele em busca de sua ressurreição trilhando as perigosas veredas do tempo perdido.

Percebeu que as coisas visíveis apresentam-se imóveis, trans­ferindo esta falsa impressão ao tempo e às pessoas. As pessoas e as coisas não são perenes. Não são imóveis em seus sonhos, onde continuam surgindo despedaçadas em suas formas. Mortos falam com vivos. A mesa que estava ali surge acolá numa sala recoberta pelo manto misterioso da intemporalidade. No sonho as coisas e as pessoas estão fora do tempo e do espaço. Os vivos falam também com os mortos.

O passado é um rio que corre em direção do presente. O fu­turo também é um rio que corre na direção do presente. Tudo é presente. É inalcançável o futuro do passado, ao menos segundo um poema de Eliot.

Proust insinua que a visão do sonho empata muito mais com a realidade passageira do homem do que o presente percebido pelos seus olhos bem abertos. Conclui que a verdade por ele procurada não está no sabor do chá e do biscoito. A verdade está dentro dele mesmo.

Admite que aquele chá com biscoito seja a porta da casa dos parentes mortos, o som de suas conversas, o perfume daquelas salas. Com tal abertura Proust escreve “Em Busca do Perdido”, explorando os recantos de sua alma e os res­tos de sua memória.

O primeiro volume de sua vasta obra, “No Caminho de Swann”, estampa um erro de tradução, na sentença proferida por Sérgio Buar­que de Holanda. Rigorosamente disse Sérgio que Proust não indicava a direção geográfica da casa do judeu Swann, mas, sim, a sua rumo histórico. Ou seja, Swann era o modelo individualista para onde caminhava toda a França. A tradutora inglesa foi acompanhada pelo seu colega brasileiro no seu erro, trocando o sentido da vida imagi­nada com a concretude da vida vivida.

Quem não mistura uma coisa com a outra. Todos nós temos rasgos maiores ou menores de recordações e de imagens. O sabor guardado na memória da minha infância esta muito preso no sorvete de leite do Bernardino. Tenho outros atalhos. Mas o sorvete de leite é uma das imagens mais percorridas. Proust tinha a taça de chá. Eu não tenho o copinho do sorvete do Bernardino, mas tenho o seu sabor cravado e gravado na minha memória. Eu sou eu e um pedaço daquela vida deixada na sorveteria da Saldanha Marinho.

Num dia desses fui a um sorveteiro, tomar sorvete e falar do Bernardino. Qual é o sorvete de leite? Sorvete de leite é o de nata, disse ele. Tomei o sorvete de nata. Mas o seu sabor nem de longe trazia o sabor do Bernardino.

O sorveteiro de hoje explicou. O Bernardino fazia sorvete com leite não pasteurizado. Hoje isso é proibido. Lembrei-me da luta dos fabricantes de queijo na França. Querem fazer queijo com leite não pasteurizado. O governo da França e os daqui, em nome da saúde publica, querem sorvetes e queijos feitos com leite pasteurizado. O passado jamais poderá ser pasteurizado.

O memorialista de Proust tem o seu chá com biscoito. O memorialista daqui guarda na sua memória o sabor do sorvete do Bernardino, uma das principais chaves do seu tempo passado. Enquanto viver, uma parte importante do seu tempo redesco­berto está guardada num relicário onde deposita o inesquecível sabor do sorvete de leite do Bernardino.

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