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29 de março de 2024 | 11:10
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‘Tire o seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor’

A melancolia de sua poesia, a constância da morte em suas com­posições, a crença no amor e na bondade e a capacidade de versar sobre as coisas mais singelas da vida, tais como a beleza das flores, o canto dos pássaros e o voo do beija-flor, marcam a trajetória artística de Nelson Cavaquinho, o menestrel da Mangueira.

Nelson era um ser desprendido das coisas e dos anseios ma­teriais, seguia fielmente a filosofia do Carpe diem (aproveite o momento), vivendo de forma simples e intensa, e fazendo amigos por onde passava.

Ao ser indagado sobre como Nelson se relacionava com as pes­soas, o compositor e poeta Paulo César Pinheiro disse: “Poucas vezes vi pessoas tão ternas no tratar com seus semelhantes, com a gente simples e humilde (prostitutas, marginais, bêbados, mendigos) que povoa seu cotidiano. Vi Nelson ganhar cachês e distribuí-los inteiros entre essa gente, num começo de manhã, ficando sem dinheiro para voltar para casa”.

Nelson realmente viveu muitas tristezas. No começo da década de 1940, depois de três dias e três noites na rua tocando cavaqui­nho, voltou para casa e descobriu que sua mãe havia morrido e fora enterrada dias antes.

O sambista sempre dizia não temer a morte, entretanto, ao sonhar que iria morrer às três horas da manhã daquele dia, não foi para a boemia, não bebeu, não tocou, não dormiu e ficou olhan­do atentamente para o relógio, que teimosamente insistia em não parar. Onze horas, meia-noite, uma hora, uma e meia, mas duas horas já era demais.

Rapidamente pulou do sofá, enxugou com a manga do pijama o suor que lhe caia pela testa, correu em direção ao relógio, e ainda em tempo, conseguiu alterar os ponteiros, atrasando-o para a meia-noi­te. Aliviado e com a certeza de que o seu dia ainda não havia che­gado, o menestrel dormiu como um anjo, certo de que a sua missão ainda não estava cumprida.

Dentre as mais belas composições do nosso menestrel podemos destacar “A flor e o espinho”, em parceria com Guilherme de Brito e Alcides Caminha. Para o poeta Manoel Bandeira essa música tem a frase mais bonita da música popular brasileira: “tire o seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor”.

Cartola conta uma história verídica, na qual ele estava no morro escutando um samba de um novo compositor, quando reconheceu aquela música, e disse: “Ô, meu amigo, esse samba é meu. Eu fiz esse samba com o Nelson”. O sambista assustado respondeu: “Eu comprei esse samba dele”.

Dias depois, ao encontrar o sambista em Mangueira, Cartola falou: “Nunca mais serei seu parceiro, pois nós fazemos um samba juntos e você vende para os outros”. Nosso menestrel, muito calmo e solícito, com aquela voz rouca que lhe era peculiar, respondeu: “Cartola, eu só vendi a minha parte da música”.

Um de seus mais constantes “parceiros” foi César Brasil, pro­prietário de um velho hotel no centro do Rio de Janeiro e incapaz de compor um verso ou de tocar uma nota em qualquer instrumen­to. Como o destino fez do nosso sambista um de seus hóspedes, também fez com que César Brasil entrasse para a história da música popular brasileira como coautor do samba “Degraus da vida”, um dos mais belos sambas do violonista.

Uma das frases mais pronunciadas pelo sambista era a seguinte: “Olha, não confia nesse pessoal da música não, viu. Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Zé Keti e outros como eu, só fazemos músicas porque não gostamos de trabalhar”.

Isso mesmo, menestrel, você não tinha tempo para o trabalho formal, pois se ocupava da poesia e da boemia. Você era aquele que vagava nas madrugadas, e para todos aqueles que te estendiam a mão, você dividiu seu coração.

Salve Nelson Cavaquinho, menestrel da Mangueira!

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