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28 de março de 2024 | 15:23
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Zabé da Loca, mais três histórias

Em Goiás Velho, ao chegar à porta da casa de dona Goiandira Ayres do Couto para conhecer seus quadros, fui recebido pela própria artista. De pronto, ela se agarrou em meu braço e disse “vou lhe mostrar toda a minha casa e todas minhas obras, mas você vai comigo abraçado, pois tenho uma labirintite terrível”.

Eu achei muito peculiar a engraçada aquela recepção. E assim conhecios pormenores de cada cômodo e as belíssimas composições de areias coloridas da Serra Dourada. A artista plástica contou-me com orgulho de seu quadro na ONU. Ao final da visita, dona Goiandira serviu-nos um café em sua grande cozinha com panelas muito ariadas. Já sentada numa cadeira de palha, sentindo-se com o dever cumprido, incentivou-me a fazer o passeio pela Serra Dourada.

No outro dia, após caminhar pelo cerrado florido de julho, contempláva­mos do alto da Serra um belíssimo pôr do sol. Comentei com os amigos do passeio “o Brasil deve ter os pores do sol mais lindos do mundo!”. Tínhamos uma francesa no grupo que emendou “é verdade, mas nós temos o melhor jeito de expressá-lo: coucher du soleil”.

Padre Leonardo era um holandês alto, forte e muito simpático. Fumava um charutão e tomava conhaque. Ele era o pároco de Clementina (SP) e eu o adorava. Às vezes aparecia em casa, pois gostava muito dos meus pais.A cada dois anos ele viajava para o seu país para visitar a família. Nas missas que antecediam essas viagens, ele comentava que ficaria um bom tempo fora da paróquia e pedia a todos que compreendessem.

Eu tinha entre 5 e 10 anos e sempre que ouvia esse seu anúncio, ficava imaginando como seria a Holanda e como seria a viagem. Aos 23 anos andei de avião pela primeira vez e fui à França para visitar meu irmão que fazia o doutorado em Besançon. No retorno, saindo de Paris, eu fazia conexão em Bruxelas, na Bélgica. Quando estava na fila para embarcar, reconheci o primeiro passageiro lá à na frente: o padre Leonardo!

Fui até ele, confirmei se se tratava de sua pessoa. Não me reconheceu de imediato. Quando citei o nome dos meus pais, de pronto selembrou. Conver­samos um pouco dentro do enorme avião da Vaspe depois não o vi mais.

Comadre Rita e comadre Lica mais eu, havíamos sido convidados para tomar o café da tarde no sítio vizinho de dona Zezé. Saímos do Vale do Céu e rumamos pela estrada de terra abaixo. Após passarmos pela Pedra do Gavião, começamos a salivar as broinhas de milho e amendoim, famosos quitutes no bairro da Pedra Branca, em Pocinhos do Rio Verde (MG). Chegando lá, tudo muito cerimonioso, como uma boa recepção mineira. Então fomos chama­dos para a mesa da copa.

Havia sucos, café, leite, pamonha, bolachinhas e duas travessas com as tais broinhas. Uma fartura que dava gosto! Coisa linda de se vê; um dó de desmanchar tanto arranjo. Dona Zezé, seu esposo, a criançada toda e todos nós sentados em volta da mesa. Timidez e silêncio… Todo mundo observava as delícias e nenhum fio de conversa acontecia. Depois de dois minutos já constrangedores, dona Zezé apontou para a broinha de milho e disse para Maria Rita “pega uma; come boba!”.

Eu nunca ouvira falar em Zabé da Loca. Nada mesmo. Por acaso, dia desses, assisti na TV um documentário sobre sua vida. Uma famosa pifeira do nordeste. Isso mesmo, pífanos. Isabel nasceu em Buíque, PE, mas ainda menina migrou para Monteiro, PB. E migrou devido as agruras da seca e a pobreza da família.

Aprendeu o pife com seu irmão Aristides. Zabé morou numa gruta de pedra em um sítio no Cariri paraibano por 25 anos! Uma quarentena social de um quarto de século! Por necessidade viveu nessa loca; uma espécie de laje fechada por duas paredes de taipa. Dado o sol e o calor fortes, ela fazia buracos no chão sob as árvores para abrigar seus filhos enquanto lidava com a roça. Seu talento artístico foi reconhecido aos 79 anos.

A partir de então registrou suas composições, apresentou-se em vários palcos do país e recebeu prêmios importantes da canção brasileira. A Rainha do Pífano deixou a gruta de pedra após receber um lote emassentamento de reforma agrária. Zabé não era louca; foi uma brasileira batalhadora e talentosa.

Neste momento em que o isolamento social é nossa vacina, aproveite para visitar museus virtuais, rezar, fazer quitutes, ouvir pífanos e histórias. Coisas simples, sem ambição.

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