André Luiz da Silva *
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Minha esposa tem algumas características e atitudes semelhantes às da minha saudosa mãe. Uma delas é a preocupação com as contas. Os avisos de água, energia, internet e telefone mal chegavam e já são imediatamente programados para pagamento, preferencialmente de modo antecipado. O IPTU, então nem se fala. É correr paga pagar no prazo, se possível à vista, para ganhar um pequeno desconto.
Para muitos pagar imposto tornou-se algo sagrado, ensinado por Cristo ao responder aos fariseus: “Dai a César o que é de César” e confirmado por Paulo em Carta aos Romanos: “Portanto, dai a cada um o que deveis: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem temor, temor; a quem honra, honra”.
Sem mergulhar no sentido teológico dos textos, passemos à compreensão do que isso significa na prática. Pessoas simples geralmente prezam pelo “nome limpo”, pela retidão e pela tranquilidade de dormir sem o fantasma do boleto atrasado ou do protesto rondando a cama.
Ocorre que o sistema tributário brasileiro é complexo, burocrático e repleto de distorções e existem aqueles que por vários motivos momentâneos não conseguem pagar. Eles não agem intencionalmente e para eles foram criados os chamados “Refis” que possibilitam renegociações. Alguns municípios chegam a oferecer desconto em juros e multas de até 100%. Medida justa, até o ponto em que começa a estimular o “jeitinho financeiro”: aplicar o dinheiro que seria usado para quitar o imposto e, com a serenidade de um monge, aguardar o perdão anual do governo.
Outra figura interessante é o devedor fraudulento que age com plena intenção de esconder impostos, enganar o Fisco e impedir qualquer tentativa de cobrança. Alguns evoluem tanto na arte da trapaça que contam com escritórios de contabilidade, advocacia e até com a criatividade de certas áreas do judiciário para empurrar o processo com a barriga até a aposentadoria ou morte de todos os envolvidos.
E, agora, entra em cena o protagonista do momento: o devedor contumaz. Esse personagem não apenas deixa de pagar; ele institucionaliza a inadimplência como modelo de negócios. Sonega sistematicamente, lucra mais que os concorrentes honestos e prejudica toda a sociedade. Uma espécie de “Robin Hood às avessas”: tira do povo e enriquece a si mesmo. Figuras assim sempre existiram no país, mas, graças a posições sociais confortáveis, influências políticas estratégicas ou outros mistérios insondáveis, sempre conseguiram escapar.
Finalmente foi aprovada na Câmara e segue para sanção presidencial a lei que estabelece sanções contra o devedor contumaz. Entre elas: proibição de usufruir de benefícios fiscais, participar de licitações públicas, solicitar recuperação judicial e até a inaptidão no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica. Pode ser o fim da farra.
Segundo os defensores do projeto, a lei beneficia toda a sociedade, ao oferecer ferramentas mais eficazes para União, Estados, Distrito Federal e Municípios cobrarem tributos e combaterem fraudes. Para as empresas que cumprem suas obrigações, cria um ambiente concorrencial mais justo, evitando que inadimplentes profissionais prosperem à custa dos honestos.
Resta a pergunta incômoda: se o projeto é tão essencial, por que demorou tanto? A resposta pode estar na perigosa simbiose que se consolidou entre esses falsos empresários e setores estratégicos dos governos e parlamentos. Talvez tenha sido necessária a megaoperação contra o grupo Refit — o maior devedor contumaz da União, com dívidas superiores a R$ 26 bilhões — para que a imprensa escancarasse a vergonha fiscal que rouba da saúde, da educação, da segurança e de tudo mais que deveria servir ao bem comum.
Com a aprovação da Emenda Constitucional nº 132/2023, que reformou o Sistema Tributário Nacional, e agora com a punição aos devedores contumazes, quem sabe estejamos, finalmente, caminhando rumo à tão sonhada justiça tributária — e, talvez, num futuro otimista, até à redução de impostos. Aliás, sonhar ainda não paga tributo!
Enquanto isso, agora com a alma lavada, contemplo a caixinha onde guardo as contas, já agendando pagamentos de IPTU, IPVA, OAB e tantos outros impostos, taxas e contribuições. É obvio que para ganhar os descontos, mas também para não contrariar minha esposa… nem a memória da minha amada mãe.
* Servidor municipal, advogado, escritor e radialista

