André Luiz da Silva *
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Com o passar do tempo, aprendi a enxergar na estatística mais do que números: vi nela uma poderosa ferramenta para compreender o mundo. Embora muitas vezes relegada a um papel secundário na escola, ela nos permite transformar dados em perguntas, e perguntas em inquietações que deveriam, no mínimo, abalar nossa zona de conforto.
Três pesquisas recentes nos oferecem um retrato paradoxal — e profundamente perturbador — do Brasil.
A primeira, do IPEA, mostra que o país possui 124.529 igrejas, das quais 71% são evangélicas. Estima-se que sete novas igrejas sejam abertas diariamente. O Censo de 2022 complementa esse dado revelando que existe uma igreja para cada 1.630 brasileiros, número superior ao de supermercados (1 para 2.207), farmácias (1 para 2.256) e postos de gasolina (1 para 4.857).
Esses números indicam que somos, ao menos em aparência, uma nação intensamente religiosa. Mas a segunda pesquisa — o Mapa da Violência 2025 — coloca essa religiosidade em xeque. Os dados são brutais: em 2024, 1.492 mulheres foram vítimas de feminicídio, assassinadas pelo simples fato de serem mulheres. 87.545 estupros foram registrados — ou seja, um a cada seis minutos. Casos de importunação sexual, pornografia não consensual e assédio também aumentaram.
A terceira pesquisa, intitulada “Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil”, expõe uma realidade ainda mais chocante: mais de 21 milhões de brasileiras sofreram algum tipo de violência no último ano. Cerca de 5,3 milhões relataram ter sofrido abuso sexual ou sido forçadas a manter relações contra a vontade. As formas mais frequentes de agressão? Ofensas verbais, agressões físicas, ameaças, perseguição, abusos e divulgação de imagens íntimas.
Diante desses dados, uma pergunta se impõe com força: como um país que tanto fala de Deus pode tratar tão mal suas mulheres?
Essa contradição deveria inquietar todos nós. Afinal, se declaramos uma fé tão vibrante, por que ela não se traduz em práticas de acolhimento, escuta e proteção? Por que, em vez de defender as vítimas, muitas vezes as desacreditamos, silenciamos ou julgamos?
A verdade é dura: o abismo entre o discurso religioso e a prática cotidiana continua matando. O mais estarrecedor é que os principais agressores não são monstros distantes, mas sim maridos, pais, tios e avôs — justamente aqueles que deveriam proteger.
Enquanto seguimos travando guerras ideológicas e disputas teológicas, enquanto discutimos dogmas e bandeiras partidárias, uma mulher é violentada. Uma criança é calada. Uma adolescente é assassinada. E essas tragédias, apesar de tantas, continuam invisíveis aos olhos de uma sociedade que enche templos, mas esvazia a compaixão.
Este não é um ataque à fé. Pelo contrário. É um apelo ao seu sentido mais verdadeiro: aquele que transforma, cura, restaura. A fé que nos leva a agir. Que nos tira do conforto dos bancos religiosos e nos move em direção às dores humanas.
Na próxima vez que formos à missa, ao culto, à sessão espiritual ou a qualquer cerimônia religiosa, que nosso louvor venha acompanhado de um compromisso prático com o respeito à dignidade humana. Que nossa oração se converta em ação. Que nossa adoração nos leve a escutar, proteger e agir em favor das mulheres e meninas que gritam por socorro — mesmo quando esse grito é silêncio.
Que as estatísticas não nos anestesiem. Que elas nos despertem.
Porque, por trás de cada número, há uma vida interrompida, um corpo ferido, uma mãe que chora, uma família devastada.
E porque nenhuma sociedade será verdadeiramente justa enquanto o corpo das mulheres continuar sendo sacrificado diante de nossos olhos fechados pela omissão.
É hora de abrir os olhos. E o coração.
A fé que não nos leva a amar, proteger e transformar o mundo ao nosso redor não passa de barulho vazio.
* Servidor municipal, advogado, escritor e radialista

