Rodrigo Gasparini Franco *
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A cidadania italiana, baseada no princípio do “iure sanguinis” — o direito de sangue —, é um dos temas mais debatidos entre descendentes de italianos ao redor do mundo. O conceito, que permite a transmissão da cidadania de geração em geração, independentemente do local de nascimento, tem raízes profundas no passado, remontando ao direito romano, que moldou não apenas a Itália, mas todo o Ocidente. Para entender a origem desse princípio, é preciso voltar à Roma Antiga, onde a cidadania era um privilégio cuidadosamente regulado e dividido em diferentes categorias, cada uma com direitos e deveres próprios.
Na Roma republicana e imperial, a cidadania não era um direito universal. O status de “civis Romani” era reservado àqueles que gozavam de todos os direitos civis, políticos e legais. Esses cidadãos plenos podiam votar, casar legalmente, possuir propriedades e recorrer ao imperador em caso de condenação. Era um privilégio que conferia não apenas proteção, mas também identidade e pertencimento a uma comunidade política. O acesso a esse status era, em grande parte, determinado pelo nascimento: filhos de cidadãos romanos herdavam automaticamente a cidadania, independentemente do local onde nascessem. Esse princípio, que mais tarde seria chamado de “ius sanguinis”, já estava presente, ainda que de forma embrionária, no direito romano.
Além dos cidadãos plenos, havia outros grupos com status diferenciados. Os “latini”, originalmente habitantes do Lácio, tinham alguns direitos civis, como o comércio e o casamento legal, mas não podiam votar nem ocupar cargos públicos em Roma. Em determinadas circunstâncias, podiam ascender à cidadania plena, especialmente por serviços prestados ao Estado. Os “peregrini”, por sua vez, eram estrangeiros livres dentro do Império, geralmente povos conquistados que não possuíam cidadania romana nem latina. Seus direitos eram limitados e estavam sujeitos às leis locais ou ao chamado “ius gentium”, o direito das gentes, que regulava as relações entre romanos e não-romanos.
Nas províncias do vasto império, a maioria da população era composta por “provinciales”, geralmente classificados como peregrinos, mas que podiam receber a cidadania romana por concessão imperial ou por mérito. Já os escravos, os “servi”, não tinham cidadania nem direitos legais, mas, se libertos, podiam adquirir uma cidadania limitada, tornando-se “liberti”.
A principal diferença entre esses grupos residia no acesso aos direitos civis, políticos e legais. Enquanto os cidadãos plenos tinham acesso total, os demais grupos viviam sob restrições, muitas vezes severas. O critério do nascimento, portanto, era fundamental para determinar o status de cada indivíduo dentro da sociedade romana. Esse modelo de transmissão da cidadania por descendência direta foi tão marcante que sobreviveu à queda do Império e influenciou profundamente os sistemas jurídicos europeus, especialmente o italiano.
Com a unificação da Itália no século XIX, o novo Estado buscou inspiração no passado romano para definir quem seria considerado italiano. O princípio do “iure sanguinis” foi adotado como base para a legislação de cidadania, em oposição ao “ius soli”, o direito de solo, mais comum em países de imigração, como os Estados Unidos. Assim, a Itália passou a reconhecer como cidadãos todos os descendentes de italianos, mesmo que nascidos no exterior, desde que pudessem comprovar a linhagem.
Esse legado romano, que valoriza o vínculo de sangue como elemento central da identidade nacional, explica por que tantos descendentes de italianos, espalhados pelo mundo, têm direito à cidadania italiana. O “iure sanguinis” não é apenas uma regra burocrática, mas a expressão de uma tradição milenar, que remonta à Roma Antiga e à complexa teia de direitos e deveres que definia quem era, de fato, um cidadão. Ao buscar suas origens, a cidadania italiana revela-se, assim, como herdeira direta de um dos mais antigos e influentes sistemas jurídicos da história.
* Advogado e consultor empresarial de Ribeirão Preto, mestre em Direito Internacional e Europeu pela Erasmus Universiteit (Holanda) e especialista em Direito Asiático pela Universidade Jiao Tong (Xangai)

