Por: Adalberto Luque
A denúncia sobre “adultização” infantil do YouTuber Felca (nome usado por Felipe Bressanim Pereira), de 27 anos, foi feita no dia 7 de agosto. Menos de 10 dias depois, no fechamento desta edição, já havia passado da marca dos 32 milhões de acessos em seu canal no YouTube.
Felca tem sido pedra no sapato de muita gente. Já denunciou as lives de NPC — transmissões ao vivo no TikTok e outras plataformas onde criadores de conteúdo se comportam como personagens não jogáveis (NPCs) de videogames, realizando ações repetitivas e reativas a interações do público, como o envio de presentes virtuais.
Denunciou uma marca de cosméticos brasileiros que se expandiu rapidamente após a criação, em 2021, sobre a qualidade de seus produtos. A empresa passou a enfrentar denúncias por atraso em entregas, por exemplo.

Outra denúncia feita pelo influenciador digital foi em relação ao “Jogo do Tigrinho” e outros jogos de azar. Mas a denúncia de Felca sobre a “adultização” infantil mexeu com um problema que, muitas vezes, a sociedade brasileira não se dá conta do tamanho e da gravidade: a pedofilia.
O YouTuber denunciou a exposição excessiva de crianças — na maioria das vezes com anuência de pais e responsáveis, que recebem “mimos” daqueles que cooptam seus filhos, como celulares de última geração.
Um dos alvos nesta denúncia é o influenciador paraibano Hytalo Santos. Felca o acusa de sexualizar a imagem de menores. Santos já vinha sendo investigado pelo Ministério Público da Paraíba desde 2024.
A denúncia de Felca rendeu a Santos a suspensão de suas redes sociais oficiais. Além disso, a Justiça autorizou buscas e apreensões em seus endereços.
De acordo com o influenciador Felca, a “adultização” de crianças e adolescentes tem como principal caminho abastecer a rede de pedófilos, tão presentes nas redes sociais quanto na dark web — isto é, uma parte da internet que não é indexada por motores de busca tradicionais e só pode ser acessada por meio de navegadores específicos, como o Tor.

Nela, o nível de anonimato é alto e está frequentemente associado a atividades ilegais, como, além da pornografia, a possibilidade de contratar assassinos de aluguel ou encomendar grandes quantidades de drogas a cartéis especializados.
No vídeo, Felca não ativou a monetização, isto é, está sem anúncios. Mesmo com milhões de visualizações, ele não vai receber um centavo sequer, o que demonstra sua determinação.
Por outro lado, foi preciso tomar providências para garantir sua segurança pessoal. Ele passou a andar com carro blindado e seguranças, pois passou a receber muitas ameaças ao comentar assuntos tão sensíveis como jogo de azar e pedofilia.
Conhecido por produzir conteúdo humorístico, o influenciador levantou uma importante bandeira. Nos últimos dias, é um dos temas mais falados entre os brasileiros, colocando, inclusive, a taxação imposta pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ao Brasil e seus exportadores.
“Devemos cobrar em massa uma mudança nas redes sociais para que conteúdos como esses não sejam espalhados, permitidos nem monetizados. Tira o dinheiro dessa galera que tudo o que eles fazem perde o sentido”, defendeu Felca.
Ações
A Polícia Federal vem, há anos, desenvolvendo trabalhos constantes em operações permanentes contra a pedofilia. São ações como as operações Horus e Proteção Integral.
O objetivo é identificar e prender envolvidos com a distribuição de imagens de exploração erótica e sexual de crianças e adolescentes. Recentemente, um homem foi preso em flagrante por armazenar material de abuso sexual infantojuvenil.

A prisão ocorreu no dia 12 de junho e os agentes também localizaram arma de fogo, além de dispositivos eletrônicos contendo arquivos ilícitos. Além das prisões, as investigações prosseguem para ampliar a rede de pedófilos já identificados e investigados pela PF.
Especialistas indicam que a exposição excessiva, com excesso de telas, é a porta de entrada para esse tipo de crime, considerado legalmente hediondo. Uma tese defendida na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) aponta que o uso excessivo de telas está relacionado a uma piora da saúde mental de seus usuários, independentemente da idade.
Idosos desenvolvem nomofobia (medo de ficar longe do celular). E, considerando apenas os estudos que avaliam crianças, 72% deles constataram aumento da depressão associado ao uso excessivo de telas.
Além disso, a frequência torna a criança uma presa fácil. Jogos com conteúdos violentos e desafios aliciam crianças que podem ser manipuladas e se expõem às mais absurdas vontades dos pedófilos, que pagam por vídeos onde os desafios são aceitos pelos pequenos.
Na política
A repercussão do caso levou o presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), a anunciar que pretende pautar projetos que combatam ou restrinjam o alcance de perfis e conteúdos nas redes sociais que promovam a “adultização” infantojuvenil.
“O vídeo do Felca sobre a ‘adultização’ das crianças chocou e mobilizou milhões de brasileiros. Esse é um tema urgente, que toca no coração da nossa sociedade. Na Câmara, há uma série de projetos importantes sobre o assunto. Vamos pautar e enfrentar essa discussão. Obrigado, Felca. Conte com a Câmara para avançar na defesa das crianças”, afirmou Motta em uma rede social, segundo a Agência Brasil.
O advogado-geral da União (AGU), Jorge Messias, também se pronunciou sobre a questão. “[As plataformas] são capazes de identificar praticamente tudo o que fazem seus usuários. Não podem fingir que não é com elas, como normalmente acontece. E a internet não pode continuar sendo uma terra sem lei; uma arma poderosa nas mãos de pedófilos, incitadores de mutilações e suicídios, golpistas e criminosos”, afirmou para a Agência Brasil.

De acordo com a Agência Câmara de Notícias, até o dia 12 de agosto os deputados federais apresentaram 32 projetos de lei. A grande maioria deles prevê a suspensão de perfis identificados com este tipo de conteúdo e que se impeça a monetização, isto é, o pagamento feito por algumas redes sociais para grande número de visualizações.
Contudo, há quem defenda cautela para evitar o controle total das redes sociais, impondo uma censura generalizada. Os debates prometem seguir acalorados em Brasília, sobretudo pela importância do tema “adultização” da infância. Muita água vai passar debaixo da ponte, mas nada é demais para combater a ação de predadores sexuais.
Exposição precoce
Psicóloga clínica e neuropsicóloga, Danielle Cristina Chaves explica que a infância é uma fase fundamental para o desenvolvimento emocional, cognitivo e social do ser humano. Ela entende que “adultização” é um processo em que a criança é exposta precocemente a comportamentos, responsabilidades ou padrões estéticos típicos de adultos.
“Isso compromete o tempo necessário para que ela vivencie experiências fundamentais para o amadurecimento saudável. É como se uma etapa fosse queimada, deixando lacunas que podem refletir em toda a vida adulta”, avalia Danielle.
Para ela, a “adultização” infantil está ligada, de forma bastante preocupante, à erotização precoce, fazendo com que a criança seja vista — e muitas vezes se veja — como um objeto sexual antes mesmo de compreender o próprio corpo e seus limites.
“Isso pode alterar a forma como ela interage com os outros, afetando sua autoestima, seus relacionamentos e sua capacidade de estabelecer vínculos saudáveis. Além disso, aumenta a vulnerabilidade a abusos e situações de risco.”

Isso pode ocasionar consequências variadas e profundas, desde dificuldades emocionais, como ansiedade, depressão e insegurança, até problemas de identidade, autoestima e relações interpessoais difíceis.
“Muitas vezes, essas crianças tornam-se adultos que não sabem lidar com frustrações ou que sentem a necessidade constante de validação externa. Também é comum desenvolverem um senso de valor pessoal baseado na aparência, e não em competências internas”, entende a neuropsicóloga.
Danielle revela que, muitas vezes, a questão pode contar com a anuência dos pais ou responsáveis. Há casos em que não percebem o problema. Outros, nem tanto.
“É uma questão delicada. Muitos pais não percebem o impacto de certas atitudes — como incentivar o uso de roupas sensuais, maquiagem ou expor a criança nas redes sociais — e agem com boas intenções. Porém, é essencial uma avaliação crítica. Não se trata apenas de apontar culpados, mas de compreender o que está por trás dessas decisões. Em alguns casos, pode haver negligência, em outros, falta de informação. De qualquer forma, é papel da sociedade e dos profissionais da saúde e educação orientar e, quando necessário, intervir”, conclui a psicóloga.
Algoritmo liga vídeos a pedófilos
Advogado, professor de criminologia com mestrado pela Unesp e especialização pela USP de Ribeirão Preto, Jean Alves entende que o termo “adultização” infantil se refere ao processo de “pular etapas”, o que, na prática, resulta em comportamentos não esperados para a idade. Isso pode não ser necessariamente ruim; ao contrário, respeitadas as individualidades, limites e proporções, pode até ser benéfico.
“Porém, a leitura da realidade brasileira, associada à dinâmica de expansão do acesso ao ambiente virtual, recheado de assédio, conteúdos inadequados — entre eles, a sexualidade precoce —, dada a natureza da baixa normatização e regulação das redes, vem demonstrando que há uma vinculação por assediadores que buscam crianças e adolescentes de forma camuflada — ou seja, não direta. Como exemplo, exposição aparentemente sobre danças está associada a um processo de inteligência artificial utilizado pelas grandes empresas de redes sociais, que acaba, de forma indireta, fazendo uma conexão entre esses vídeos, pelo processo de algoritmo, isto é, ligando usuários que têm interesse em conteúdo infantil [pedófilos] com fotografias e vídeos de crianças e adolescentes de modo geral e indiscriminado”, aponta Alves.

Em outras palavras, mesmo que essas imagens não contenham exposição de dança, afeto ou qualquer outro conteúdo, apenas o fato de conter crianças e adolescentes se torna um conteúdo direcionado para predadores, agressores sexuais ou qualquer pessoa que tenha patologia associada a interesse sexual por crianças — pedófilos e pornógrafos.
O professor de criminologia defende que haja regulamentação específica sobre atividades virtuais que envolvam acesso infantojuvenil. Atualmente, de acordo com Alves, não há regulamentação adequada das big techs, o que contribui para a ausência ou ineficiência de autorregulação ou remoção espontânea por parte das empresas.
“Ao menor sinal de identificação de ilícito envolvendo crianças ou adolescentes, denúncias à Polícia Civil e ao Ministério Público são instrumentos eficientes que promoverão medidas judiciais de determinações específicas no sentido de remoção célere do conteúdo, bem como a identificação e responsabilização dos autores e participantes”, defende.
Alves alerta que pais ou responsáveis que concordam com a “adultização” de crianças podem ser penalizados. “O Código Penal tem uma regra de responsabilização por omissão para aqueles que têm, por lei, a obrigação de cuidar, caso dos pais.”
Se a omissão gerar riscos para o desenvolvimento físico, psicológico e sexual da criança ou adolescente, os pais podem ser responsabilizados pelo crime praticado de forma direta pelos aliciadores.
“Há, ainda, o crime de omissão própria, consistente no abandono de incapaz, que é a conduta de abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, que seja incapaz de defender-se dos riscos do abandono — com penas que podem chegar até 14 anos de reclusão”, adverte Alves.
O professor de criminologia analisa que, tanto o Código Penal quanto o Estatuto da Criança e do Adolescente já possuem leis capazes de responsabilizar a “adultização” no contexto de sexo explícito, pornográfico ou atos libidinosos (condutas com conotação sexual).
“Entretanto, a regulação e o endurecimento do acesso ao conteúdo infantojuvenil no ambiente virtual, isto é, a normatização e fiscalização das redes sociais, são pautas que necessitam de discussões urgentes e a promoção de legislações específicas, sendo o caso de melhor definição do termo ‘adultização’ e, exatamente, qual de suas vertentes configuraria ilícito civil ou criminal, assim como legislações que tenham conteúdo de políticas públicas, educacionais e sociais com foco na prevenção e regulamentação do uso e acesso virtual, seja frente aos usuários, seja no que diz respeito à responsabilidade das empresas e até mesmo da fiscalização governamental”, encerra o advogado especialista em criminologia.
(Atualizada em 17/08 às 20h30)

