Tribuna Ribeirão
Artigos

As gavetas

Antonio Carlos Augusto Gama

*
[email protected]

De vez em quando nos dá vontade de limpar as gavetas.

 Se você começa, tira uma coisa, fica rolando-a na mão, e depois outra e mais outra. É um montão de coisas, papéis, cartas, recibos, fitas, pedaços de barbante, metade de uma fotografia amarelecida, moedinhas, uma lupa, o diabo.

Você sabe que devia jogar fora muito do que vai pondo sobre a mesa, mas não joga, e afinal empurra tudo, ainda mais misturado, de volta à gaveta.

Ficará para outro dia fazer uma limpeza, mas este dia não chega nunca, e a gaveta vai continuar entulhada.

Nós mesmos, e nossa vida, somos uma gaveta. Cheia de tudo que já não serve, e tudo continua guardado, lembranças de uma tarde de chuva, os óculos quebrados, o botão que caiu do paletó, e uma saudade triste, uma saudade do que já foi e nunca mais voltará, toma conta da gente.

Certo, acho que há pessoas de gavetas vazias, os homens práticos que se recusam a guardar coisas inúteis.

Nós outros, os sujeitos de gavetas cheias, talvez achemos que algum dia vamos precisar daquele pedaço de barbante, ou daquele alfinete.

Na porta interna do guarda-roupa acham-se as gravatas que saíram da moda, e até um guarda-chuva meio esculhambado.

O frasco quase vazio de xarope, no armário, nos faz lembrar daquela gripe, em que tossíamos do quarto à sala. 

Dentro dos livros, descobrimos estampas de santinhos, de nossa meninice. Foram utilizadas para marcarmos a página. O mais perigoso, porém, são os frascos de perfume que secou. Se os abrirmos, evola-se ainda um resto de lavanda, o perfume da mulher amada.

E aquela velha máquina de escrever, fechada na sua caixa? Ou o tinteiro de bronze, com o recipiente ainda manchado pela tinta que evaporou? 

Velhas revistas, velhos jornais dobrados, amarelecidos pelos anos que se foram…

Fecho a gaveta, e me encerro dentro de mim mesmo.

Tudo que perdi e não mais existe permanece nas gavetas de mim.

* Promotor de Justiça, aposentado, advogado, professor de Direito e escritor

Postagens relacionadas

A Tonga da mironga do Kabuletê

Redação 1

Preservação de patrimônio, desenvolvimento e bom senso

William Teodoro

O Brasil não conhece o Brasil

Redação 1

Utilizamos cookies para melhorar a sua experiência no site. Ao continuar navegando, você concorda com a nossa Política de Privacidade. Aceitar Política de Privacidade

Social Media Auto Publish Powered By : XYZScripts.com