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Inteligência Artificial e Direito – Utopias e Distopias

Conceição Lima *

Agora que o ChatGPT-4 já gabaritou o exame da Ordem dos Advogados, a IA  vem se tornando quase que onipresente na rotina dos juristas brasileiros. Os médios e grandes escritórios não mais conseguem dispensá-la para vasculhar e fazer um pente-fino no gigantesco volume de informações jurídicas que pesam sobre os ombros de seus advogados, incluindo a produção de argumentos e provas, contraprovas e até o perfil do advogado “rival”.

Mesmo os pequenos escritórios não têm ficado imunes. A IA também sopra a favor deles, que já começam a sentir-lhe os impactos “benfazejos”: levam hoje apenas 24 horas para fazerem um trabalho que antes gastavam uma semana. 

Não se pode também negar que a IA tem deixado pelo caminho um rastro de advogados desempregados ou desvalorizados.

Aliás, um desses “grandes”confessa que reduziu o número desses profissionais de 1.000 para 300… E quem permaneceu teve de mudar radicalmente o perfil. O novo mercado jurídico vai exigir um outro tipo de profissional. “Não basta dominar a lei”.

Aliás, atentos ao que ocorre no mundo real, alguns cursos de Direito já estão se precavendo. A FGV-SP, por exemplo,largou na frente, com uma disciplina visando instrumentalizar seus alunos para o uso da IA. 

No entanto, não se pode ignorar que o uso indiscriminado da Inteligência Artificial na área do Direito traumatiza a sociedade. Com toda a razão!

Ninguém ignora que o Brasil não possui uma legislação específica para a IA. Danos jurídicos causados por ela têm sido analisados com base no Código Civil e Código de Defesa do Consumidor. E olha que são muitos esses danos! Fraudes bancárias, violação dos direitos do consumidor, questões de responsabilidade civil, veiculação de preconceitos, violação da privacidade, manipulação da opinião pública, riscos à segurança pessoal ou pública, para citar apenas alguns mais visíveis.

Enquanto a IA avança a “zilhões” por segundo, a legislação jaz adormecida no Congresso Nacional desde 2023 (Projeto de Lei 2338/23 denominado Marco Legal da Inteligência Artificial no Brasil). E, dado que a “titular” não vem, vamos nos ajeitando com a substituta capenga, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).

Todavia, a questão mais melindrosa parece ser de outro nível. Trata-sedo uso da Inteligência Artificial na seara da decisão jurídica.

E a Resolução 615/2025 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que se propôs a estabelecer diretrizes, requisitos e uma estrutura de governança para o desenvolvimento, uso e auditabilidade de ferramentas de IA, é clara: que a IA faça de tudo, menos tomar decisões pelos juízes!

Sempre que questionado, o Supremo Tribunal Federal não titubeia, na voz de sua Secretaria Geral:a IA “ainda está longe de ser usada no STF como ferramenta na fase decisória das ações”.

Todavia, ela mesma faz uma ressalva curiosa: “Mas a tecnologia e esses grandes modelos […] evoluem rapidamente, então já é possível pensar que, em algum momento do futuro, uma minuta ou análise de jurisprudência possa ser sugerida.”

Aí, segundo os precavidos, é que “mora o perigo”!A DISTOPIA da UTOPIA… Ou seja, o uso “indiscriminado” dessas ferramentas por um número cada vez maior de profissionais do Direito, sem regulamentação adequada.

O primeiro questionamento reside exatamente na dúvida: essa é uma tecnologia realmente neutra e de risco zero?Quais os reais impactos dela nesse segmento tão “delicado” da tessitura social? 

Não se trata, evidentemente, de demonizar o progresso e a tecnologia, mas, sim, de tentar compreender seus reflexos e ponderar como tais ferramentas podem ou não ser empregadas, onde, de que modo e em que medida. Porém, delegar parte do trabalho de análise ou decisão a ferramentas desprovidas de subjetividade não poderá nos conduzir a uma justiça cada vez mais desumanizada?

Teremos com isso decisões mais acertadas?

Todos sabemos que a “inteligência das máquinas” é construída através do acervo da Internet, nem sempre confiável ou ponderado. Há, sim, que se levar em conta as possíveis falhas de processamento, as conhecidas “alucinações” da IA, conforme o jargão tecnológico.Também, onde fica a atenção às particularidades de cada caso, aos inúmeros fatores humanos e subjetivos envolvidos no processo de interpretação e tomada de decisão?

A distopia se torna ainda mais alarmante quando se evoca a velha ameaça da substituição do homem pela máquina. Ainda que eu seja uma entusiasta declarada do progresso tecnológico, não chego ao exagero de ignorar a velha e justificada ameaça da substituição (ou dominação) do homem pela máquina. Com certeza, ainda precisamos e continuaremos precisando de filtros e leituras humanas.

Mesmo porque há que se considerar o argumento filosófico da tragédia que seria o apagamento total do sujeito homem e o seu distanciamento do próprio processo de existência. Nenhum tipo de racionalidade utópica justificaria tal absurdo distópico.



* Doutora em Letras, com pós-doutorado em Linguística, escritora, conferencista e palestrante, membro eleito da Academia Ribeirãopretana de Letras e da Academia membro fundador da Academia Feminina Sul-Mineira de Letras

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