Tribuna Ribeirão
Artigos

A queda da Esquerdogata: crônica de um cancelamento à brasileira


Taís Roxo Fonseca *

[email protected] 



Há pouco mais de uma semana, Ribeirão Preto, parou para assistir o espetáculo de uma queda, tendo como protagonista, uma mulher conhecida nas redes sociais como Esquerdogata, influencer de esquerda, uma mulher bonita, crescida e criada na periferia, de fala inteligente, sempre em ponto de ebulição.

A acusação: desacato. O contexto: uma madrugada etílica, uma abordagem policial e uma sequência de frases ditas sob efeito do álcool, gravadas pelos policiais, editadas por eles próprios e lançadas na mídia, que atualmente representa a antiga arena romana dos leões famintos prontos a devorar a presa, sob os olhares da população atenta.

A cobertura do flagrante foi gravada, editada pelos policiais e lançados na internet, com a precisão de uma flecha envenenada, colocou-se somente os piores momentos da Esquerdogata, os melhores, ou seja, a razão de todo o imbróglio, retirou-se do contexto.

Fez lembrar quando a Rede Globo de Televisão, em 1989, editou o então debate entre os candidatos presidenciáveis Lula e Collor, mostrando os gols do Collor e os chutes errados do Lula, resultando na eleição do Collor. 

Assistindo o vídeo na íntegra, pude entender toda a situação que envolveu a Nossa Esquerdogata, ela voltava para sua residência, quando viu os policiais usando de truculência com garotos pretos, nesse momento interpelou os policiais dizendo que eles sendo pretos não deveriam abordar daquela forma os garotos pretos também, a frase caiu como se eles tivessem agindo da mesma maneira que agiam os capitães do mato, aqueles negros que se punham a caçar, torturar e matar, seus próprios pares à mando dos senhores brancos.

Na história do Brasil, o capitão do mato é uma das nossas imagens mais amargas, sabemos que o racismo está na alma do Brasil. Mas naquela madrugada que a Esquerdogata topou com os policiais, ela conseguiu liberar os meninos e virou a ré da situação no lugar deles, a analogia que fez comparando os policiais aos antigos capitães do mato, virou sentença contra ela, que somente estava querendo defender os meninos.

E desta feita, os guardas a prenderam, e a Esquerdogata alterada passou a proferir frases tais como: que o policial era pobre, que não tinha estudado, que não podia comprar celular caro, que devia morar na periferia por isso agia daquela forma ignorante com os meninos.

Freud diria que a Esquerdogata foi punida não somente pelo que fez, mas pelo que representa. E diria ainda mais, que a Esquerdogada estava falando de si própria, pois ela também é de família periférica, isso Freud denomina de deslocamento do eu.

O inconsciente coletivo brasileiro não suporta ver a mulher periférica que ascende, é preciso vê- la cair para restaurar a ordem. O mais dramático ainda é ver a esquerda ribeirãopretana, os pares da Esquerdogata, irem imediatamente falar que ela deve ser expulsa do partido.

Ué, não é a esquerda que não solta a mão de ninguém.

Em seguida ainda, os porta vozes do poder municipal entram na arena midiática para decretarem outra sentença contra ela, sem o devido respeito ao contraditório e a ampla defesa, expõem a privacidade dos documentos funcionais da Esquerdogata em público, que deveriam ser restritos às partes interessadas, já que ela faz parte dos quadros municipais, por ter ingressado através de concurso público.

E para jogar mais pedra na “geni”, imputam-lhe uma contravenção penal por fazer rifa sem autorização, lei essa totalmente em desuso, apesar de vigente, todos fazem rifa sem autorização, o dono do bar da esquina, a diarista, o pipoqueiro, mas a Esquerdogata não pode .

Assim, o espetáculo esta mais completo. 

Ninguém perguntou se ela estava em tratamento, se ela estava em um colapso, padecendo de burnout, a queima total do ser humano. E os seus filhos assistindo ao linchamento da mãe.

O que se sabe é que ninguém deve ser condenado com base em provas adulteradas e editadas. 

Além do mais, esses policiais mereceriam, não um prêmio ou condecoração, como surpreendentemente o foram por prenderem a Esquerdogata, mas uma punição por adulteração de provas e exposição em mídia . E assim, a Esquerdogata foi lançada à arena, não de Roma, mas da internet, os leões de hoje não rugem, digitam. As pedras de hoje não mais voam, viralizam.

* Advogada

Postagens relacionadas

Liberdade de expressão

William Teodoro

O silêncio

William Teodoro

O Reino de Deus!

William Teodoro

Utilizamos cookies para melhorar a sua experiência no site. Ao continuar navegando, você concorda com a nossa Política de Privacidade. Aceitar Política de Privacidade

Social Media Auto Publish Powered By : XYZScripts.com