Conceição Lima *
Há tempos que já vimos trocando a caneta pelo teclado e o papel pelas telas, mas uma mudança verdadeiramente radical somente começou a acontecer há poucos anos, a partir de 2023, com o surgimento dos chatbots de Inteligência Artificial Generativa.
A escrita produzida unicamente por humanos está dando lugar a uma nova “ontologia textual”, a reescrita algorítmica, em que o texto pode ser, ao menos potencialmente, produzido por uma máquina e reescrito por humanos (ou vice-versa), em uma cadeia virtualmente infinita de reelaborações. Anteriormente, escrever sempre foi entendido como um ato deliberadamente humano.
Havia, é claro, a reescrita, mas ela cumpria apenas um papel auxiliar nesse cenário, o de aprimorar o que fora originalmente concebido, revisá-lo, refiná-lo. A autoria era humana por definição, mesmo quando acontecia o plágio e as apropriações indevidas. Esse fundamento começou a vacilar, quando surgiram ferramentas capazes de produzir textos inteiros com fluência, coesão e até mesmo um certo estilo, perfeitamente capazes de passar por um texto humano e, muitas vezes, melhor até do que a maioria deles.
Pouco importa se há ou não uma consciência por detrás da máquina, se ela compreende alguma coisa ou apenas reproduz padrões, se há intencionalidade. Para quem escreve por dever de ofício, o que tem sido levado em conta é a facilidade trazida ao usuário.
Pode-se dizer, portanto, que há uma nova forma de escrita híbrida humano/máquina (ou vice-versa), a qual deverá prevalecer doravante na civilização. Eis que surge também um novo processo de intertextualidade. Em seu sentido clássico, esse termo traduz a relação entre diferentes textos, como um livro que dialoga com outro, ou uma música que cita um poema.
Quando aplicada à relação humano/máquina, essa ideia se expande para incluir interações entre linguagens humanas e algoritmos, que exploram como os discursos, linguagens e narrativas entre seres humanos e tecnologias se entrelaçam, criando novas formas de expressão, compreensão e interação. Essa intertextualidade desafia as noções tradicionais de autoria, originalidade e criatividade.
E, quando uma máquina se torna capaz de produzir um enunciado com fluência e coerência e torná-lo indistinguível de um texto humano, a prática humana de escrever é posta em xeque. É nesse ponto que a questão chega à escola. Na prática escolar o problema se traduz de modo ainda mais sério: o risco de uma geração que vai desaprender de pensar ao escrever.
Nesse caminho, a Inteligência Artificial pode, sem dúvida, empobrecer o exercício do pensamento, não por eventualmente produzir respostas erradas ou inadequadas, mas por impedir o íntimo processo de elaboração mental, que constitui o fundamento da formação intelectual.Ignorar essas ferramentas, contudo, não é mais possível, sob pena de a escola se tornar um espaço de resistência nostálgica (e inócua), desconectada da experiência real dos estudantes, que já usam largamente esses recursos.
Cabe aos professores, por mais desafiador que seja, encontrar no uso da IA uma oportunidade de aceitar essa intertextualidade e jogar com ela. Por exemplo, tomar a IA não como substituta da escrita, mas como um ponto de partida, ou seja, propor que os estudantes solicitem à IA a primeira versão de um texto, um esboço, uma estrutura preliminar e, a partir disso, reler o que foi produzido de forma a questioná-lo e reescrevê-lo integralmente com suas próprias palavras.
Esse exercício forçaria os alunos a se confrontar com a linguagem, a experimentar o que sabem e a distinguir o que compreendem daquilo que apenas repetem. E o ato de reescrever, assim, poderia se tornar uma experiência de discernimento. O estudante precisará decidir o que manter e o que abandonar, o que faz sentido e o que é apenas bobagem.
Dessa forma, a reescrita se tornaria um gesto de apropriação e de autoria (ou de coautoria, ao menos), sendo que, do professor, se espera que conduza, como mediador atento, os alunos nesse caminho estreito entre o humano e o algorítmico, fazendo-os descobrir a própria voz. De qualquer forma, tudo aponta para um futuro em que linguagem e pensamento serão cada vez mais colaborativos entre humanos e máquinas. Isso exige que desenvolvamos uma leitura crítica ampliada, capaz de reconhecer não apenas o conteúdo, mas também os processos e intenções por trás da produção textual.
A interpretação também se torna mais complexa: não basta entender o que está sendo dito, é preciso compreender quem está dizendo, como foi gerado, com que dados e com que propósito. A intertextualidade entre humanos e máquinas nos convida a repensar o papel da autoria, da verdade e da criatividade. Em vez de temer essa colaboração, podemos vê-la como uma oportunidade de expandir nossa inteligência coletiva, desde que estejamos preparados para ler com mais profundidade, questionar com mais rigor e dialogar com mais consciência.
* Doutora em Letras, com pós-doutorado em Linguística, escritora, conferencista e palestrante, membro eleito da Academia Ribeirãopretana de Letras e da Academia membro fundador da Academia Feminina Sul-Mineira de Letras

