Tribuna Ribeirão
Geral

Do Vale do Silício a Shenzhen

Rodrigo Gasparini Franco *

[email protected]



A falência da iRobot e sua venda para a chinesa Picea Robotics, principal credora e verdadeira fabricante do aspirador-robô Roomba, encerra um ciclo simbólico da tecnologia doméstica moderna. A empresa que popularizou a ideia de um robô limpando a casa, ícone da inovação americana do início dos anos 2000, passa agora ao controle de uma gigante industrial chinesa.

Mais que uma transação comercial, o movimento reconfigura a disputa geopolítica entre Estados Unidos e China num dos territórios mais sensíveis da economia digital: o cruzamento entre hardware, dados e inteligência artificial.

Nos bastidores do setor, há anos se sabia que a Picea era a força silenciosa por trás do Roomba. Era nas suas linhas de montagem, na China, que o robô ganhava forma física, enquanto a iRobot mantinha o desenho do produto, o software e a marca.

Com o desequilíbrio financeiro agravado pela concorrência asiática de baixo custo, pela pressão de investidores e por um ambiente macroeconômico hostil, a iRobot se viu encurralada. A principal credora, que até então apenas produzia, tornou-se dona daquilo que produzia. A fábrica virou dona da marca.

E esse detalhe muda tudo.

Para os americanos, o episódio se soma a uma sequência de alertas. Se antes a preocupação com empresas chinesas se concentrava em infraestrutura crítica, 5G e aplicativos, agora entra em cena a tomada de controle de um símbolo da robótica doméstica americana.

Aspiradores-robô não são mísseis, mas carregam sensores, mapas detalhados de casas, padrões de comportamento de consumidores e um fluxo constante de dados que, combinados com IA, valem ouro.

Em um cenário de crescente desconfiança tecnológica, a migração desse ativo para uma corporação chinesa alimenta o debate sobre segurança, soberania digital e dependência industrial.

Do lado chinês, a operação é um troféu estratégico. A Picea não compra apenas um produto consolidado no Ocidente; compra a narrativa original do robô doméstico moderno.

Ao incorporar o Roomba, ganha acesso a uma base global de clientes, a canais de distribuição maduros e a um repertório de patentes e know-how construído durante décadas. Somada à sua escala industrial, à capacidade de reduzir custos e lançar novas gerações de robôs em ritmo acelerado, a empresa se coloca em posição privilegiada para inaugurar uma nova era da robótica doméstica, cada vez mais integrada a ecossistemas de IA, assistentes virtuais e casas inteligentes.

O paralelo com a corrida dos modelos de inteligência artificial é inevitável. Nos EUA, o ChatGPT virou o símbolo da liderança americana em IA generativa, concentrando atenção, capital e regulação. Na China, projetos como o DeepSeek emergem como resposta: menos visíveis no Ocidente, mas apoiados por um ecossistema industrial e estatal que pensa em escala, integração com hardware e domínio de cadeias produtivas.

Se a disputa entre ChatGPT e DeepSeek representa a guerra de cérebros algorítmicos, o embate em torno do Roomba e da Picea mostra a guerra pelos corpos das máquinas: quem fabrica, quem controla, quem distribui.

Há, porém, uma camada mais profunda nesta transição.

A criação americana que inaugurou o robô doméstico moderno passa agora a ser peça de uma estratégia industrial chinesa que mira a dominação de mercados em larga escala. Não é apenas um caso de perda de uma empresa nacional, mas de deslocamento do centro de gravidade da inovação: de laboratórios de pesquisa financiados por venture capital nos Estados Unidos para parques industriais hiper eficientes na China, capazes de transformar protótipos em produtos onipresentes com margens apertadas e ritmos quase impossíveis de replicar no Ocidente.

Na prática, o consumidor poderá ver robôs mais baratos, mais variados e mais conectados. Mas essa aparente vitória do bolso vem acompanhada de uma concentração de poder tecnológico em um polo que integra hardware, dados e IA sob um guarda-chuva industrial coordenado.

Da mesma forma que modelos como ChatGPT e DeepSeek disputam quem será a “camada lógica” por onde passam informações e decisões, empresas como a Picea disputam quem estará fisicamente dentro das casas, mapeando cada canto, registrando cada rotina, tornando-se infraestrutura silenciosa da vida cotidiana.

Ao fim, a queda da iRobot e a ascensão da Picea sobre o Roomba não são apenas mais um capítulo da globalização. São o retrato de um mundo em que a criação americana abre caminho, mas é a engenharia industrial chinesa que consolida, escala e, cada vez mais, passa a mandar no jogo.

* Advogado e consultor empresarial de Ribeirão Preto, mestre em Direito Internacional e Europeu pela Erasmus Universiteit (Holanda) e especialista em Direito Asiático pela Universidade Jiao Tong (Xangai)

Postagens relacionadas

Larga Brasa

William Teodoro

PRÉDIO EM SP – Curto-circuito foi a causa de incêndio

Redação 1

Dispensados testes a quem entra no país

William Teodoro

Utilizamos cookies para melhorar a sua experiência no site. Ao continuar navegando, você concorda com a nossa Política de Privacidade. Aceitar Política de Privacidade

Social Media Auto Publish Powered By : XYZScripts.com