Antonio Carlos Augusto Gama *
A bem dizer, não sei o que o sior veio fazer aqui. Veio assuntar, veio perguntar, promode que lhe disseram que sou homem de muitas histórias. O que sou é velho com mais de setenta anos, e andejei de pasto a pasto. Pois fique à vontade, aqui mesmo, na cozinha, sentado aí diante da mesa grande de tábuas lavadas. No fogão há sempre uns paus de lenha, de que avivo as chamas, e o bule de café no banho-maria. É o lugar de meu gosto, nas noites frias.
Aqui, sentado, cogito. Mas ainda saio pelos campos, montado no meu cavalo. Vou ver as roças e o gado. O pessoal já não é o mesmo, tem por aí muita gente perrengue. As mulheres, sim, continuam muito bonitas. Sou de lhe dizer que tive amores e dores. Agora, os filhos dispersos, os parentes enterrados. Fui criado por meu padrinho, nas terras dele. Fazendão. Desde menino, moleque. Meus pais deixaram-me aos cuidados de meu padrinho e afundaram-se por aí.
E eu aos tombos, na ilharga dos cavalos. Encorpei, ganhei uns fios de bigode. Dentes, sempre os tive bons, dentes de arrancar rolhas de garrafas. Não que eu seja de beber, bebo, mas só um trago, sempre desconfiei da diaba da cachaça. Comer, como de tudo, lombo de porco, linguiça, tutu de feijão, arroz, paçoquinha e pimenta malagueta.
O trote da vida é muito variado. Essas terras aí são minhas. Os morros que o sior vê ao longe, o rio, aonde vou pescar. Chuvaradas de dezembro e janeiro… Gosto de ver, da minha varanda. Os pastos reverdejando. E a passarada nas laranjeiras. Ficou a negra Sinhana, já meio caduca, e de cabelo branco. Resmungona. Ainda me trata de menino.
Mas isto aqui já teve um povaréu. A cidade cresceu, ainda vou lá, mas de arribada. Vejo os sobradinhos, a chaminé da fábrica. Volto. Não sou herege. Vou às vezes à igreja, mas fico lá atrás, escutando o padre despejar os seus sermões, céu, inferno e as caldeiras de Belzebu. Não acho que Ele nos condene. O sofrimento é mesmo aqui da terra.
Paga quem fez malfeito. O boticário, seu Joaquim, bom homem, me ensinou algumas coisas. Todos nos ensinam, mas é besteira somar saberes. Meu compadre Heitor, que também já se foi, me dizia: “Como é que é não tira bicho do pé” A terra tem muitos bichos, de variada servidão, e alguns malignos. O homem é um deles. Ali no poleiro, o meu papagaio.
Tem mais de trinta anos. Ele canta, de manhã e de tarde, e assovia o hino nacional. Cachorro, também nunca dispensei. Este aí, agora, é o Barão, cachorrão de muito rosnar, mas amigável, enroscado a meus pés, debaixo da mesa. Os gatos andam soltos, e se espicham na sua preguiça, no quintal. Galinhas, galos, marrecos, também no terreiro.
Meu gosto é escutar, amanhecente, os galos cantarem. Levantoda cama, lavo a cara, vou espiar os longes e os pertos. Tomo o meu café com leite, como o pão com manteiga, o queijo. Os fazeres do homem são os mesmos. O pessoal sabe: não apreceio caçadores nas minhas terras. Proíbo.
Aqui não entram. Essas armas de fogo aí na minha sala, carabinas, espingardas, garruchas, são petrechos de outrora, por precisão e resguardo.
O sior viu relampejar lá fora, quando chegou. Não tem de que se arrecear, a chuva ainda não é para hoje. São avisos de longe, para que o pessoal se aprecate. Já vivi muitas cheias. Mas já não se despejam, como antes, os aguaçais. Foram derrubadas muitas matas, e é este o resultado. Noutro tempo, sim: os rios inchavam, as lagoas engordavam, vinham as águas até aqui perto. E chegava um vaqueiro, apeava, as esporas tinindo, e me dizia:
“Patrão, rodou a ponte do ribeirão…” Pontes, pinguelas, mata-burros, porteiras. Duravam meses inteiros as chuvas, era preciso pendurar a roupa lavada dentro de casa. Dias de fartura. O sior terá visto, por aí, alguns livros, almanaques. Gosto deles, ainda leio. Encavalo os óculos no nariz. Muita sabedoria, mas também muita besteira.
A Bíblia, essa, não deixo de reler. Muitas histórias de reis barbudos, de mulheres safadas. A bem dizer, a vida é como uma estrada; vai-se indo… Isso, aprendi, e logo lhe conto.
* Promotor de Justiça, aposentado, advogado, professor de Direito e escritor

