Tribuna Ribeirão
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A biblioteca

Antonio Carlos Augusto Gama *


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A biblioteca, de seis pavimentos, ocupava todo um quarteirão da cidade. Mas a sua entrada era restrita a quem se submetesse antes a um exame de saúde mental e cultural. Uma vez ingressado nela, o leitor não podia mais sair, e era subvencionado pelos poderes públicos. 

Havia lá dentro, além dos funcionários, uns cinquenta leitores, ali enclausurados para sempre. Liam, liam, noite e dia, faziam pesquisas e escreviam outros livros que afinal fariam parte do acervo da instituição.

Um acervo de milhões de volumes, de revistas, de jornais, de mapas, gravuras, bustos de mármore, quadros. 

Alguns tinham a sua própria cela, e nelas se encerravam a maior parte do tempo. As refeições eram servidas pontualmente, três vezes por dia. E havia os alojamentos, quase monásticos, para dormir.

Quem nela ingressasse, não veria mais as ruas, os seus familiares, era como se tivesse feito voto de permanência definitiva. Envelhecia-se e morria-se nas suas dependências, e os defuntos eram enterrados num pátio interno, debaixo de pedras iguais. 

O regime era severo, não admitia violação. E cada vez chegavam mais livros, que eram fichados e encadernados nas próprias oficinas da biblioteca.

Cada um tinha a sua própria especialidade, mas os debates, em conjunto, ou em grupos de três ou quatro eram permitidos. 

Aqueles que se dedicavam aos dicionários, amontoavam gordos volumes sobre a sua mesa, e investigavam interminavelmente adjetivos, substantivos, verbos e advérbios, aumentando, em resmas de papel, a sua contribuição, o seu estudo sobre a etimologia das palavras, o seu uso e desuso, os arcaísmos, a gíria, as locuções, toda a fraseologia.

Os gramáticos espetavam regras na ponta da pena, e digladiavam-se. Os filósofos discutiam ferozmente Platão, Aristóteles, e toda a caterva de doutrinadores, desde os pessimistas aos otimistas, e os heresiarcas. 

Outros, os poetas, de melenas caspentas sobre os ombros, catavam as metáforas, e engalfinhavam-se sobre Homero, Virgílio, Dante e Camões, enquanto os teatrólogos disputavam sobre Shakespeare e Pirandelo, e os líricos faziam elegias, odes, deblaterando sobre a métrica, o verso livre, a rima e o soneto. Uma atividade incessante.

O governador, de quem eu era oficial de gabinete, desaprovou o meu desejo de ingressar na Biblioteca.

— A sua vocação deve ser a política e você pode ser eleito deputado.
— Eu, excelência? Deus me livre! Não tenho aptidão para intrigas e corrupção…
— Fazer leis é muito nobre.
— Mas já há um excesso de leis, decretos, regulamentos, portarias.

Se me permite, opto pelo meu ingresso na Biblioteca.

Ele concordou com relutância, submeti-me aos exames de praxe e fui aprovado. 

Minha família lamentou durante muitos dias. Você vai submeter-se a uma reclusão por toda a vida… E podia se casar, ter a sua família, casa, filhos. 

Despedi-me de Alice, na praça, numa noite de luar.

Adeus árvores, adeus passarinhos, adeus chuvas de verão, adeus flores e campinas verdejantes!

Entrei na Biblioteca e as suas portas pesadas fecharam-se às minhas costas.



* Promotor de Justiça, aposentado, advogado, professor de Direito e escritor

 

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