Tribuna Ribeirão
Artigos

A epopeia plebeia   

Antonio Carlos Augusto Gama *
[email protected]

Embora atualmente eu seja um adepto apaixonado do tênis, o futebol continua a correr nas minhas veias e as atuações frustrantes da seleção brasileira nos últimos anos fizeram-me refletir sobre o significado do ludopédio.

É bastante conhecida e muito interessante a analogia entre as partidas dos esportes coletivos, disputadas por times ou equipes, com uma guerra ou batalha simbólica, em que dois exércitos, com suas bandeiras, suas cores, seus hinos e soldados, se enfrentam sob a expectativa e o estímulo de sua “nação” de torcedores, que se rejubilam nas vitórias e se prostram nas derrotas. Pena que muitos levem a sério tal encenação, odeiem realmente os adversários e se comportem como bárbaros e selvagens nos estádios.

Já se disse há muito que as antigas epopeias seriam incompatíveis com a vida moderna, o que talvez explique ou empreste sustentação a esta ideia do futebol como uma nova epopeia ou a transmigração desta para os nossos tempos.

Tal como a poesia (Ilíada, Odisseia, Eneida, Os Lusíadas etc.), o antigo teatro grego tomava da épica para compor suas tragédias, consideradas como o mais nobre dos gêneros literários, e cujos maiores vultos, Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, teriam escrito mais de trezentas peças, a maioria delas perdidas para sempre. Felizmente nos restaram algumas célebres e magníficas, como Prometeu Acorrentado, Édipo Rei e Medeia, para citar apenas uma obra de cada qual daqueles autores, respectivamente.

As tragédias, fundamentadas na mitologia helênica (uma das concepções mais admiráveis já produzidas pela humanidade na busca de explicar os mistérios da existência), são a expressão desesperada do homem, que luta contra todas as adversidades e quase nunca consegue evitar a desgraça. Assim também no futebol, em que as conquistas de campeonatos, as grandes vitórias são excepcionais. Haverá apenas um time vencedor, e todos os outros, e seus torcedores, amargarão inapelavelmente a desdita da derrota.

No teatro grego, as tragédias eram constituídas em cinco atos (os “tempos” da partida de futebol ou as “rodadas” ou “fases” dos campeonatos ou torneios) e, além dos atores (os jogadores), intervinham o coro (os narradores, comentaristas e repórteres, as comissões técnicas) e a plateia (as torcidas). Ao longo da representação, os atores provocavam sentimentos e reações no coro e na plateia, a qual respondia, concordando ou discordando, cantando com o coro.

Nesse processo de projeção/identificação entre mitos e a realidade, em que se envolvem homens (os jogadores comuns), deuses (cartolas, árbitros e seus assistentes ou “bandeirinhas’, capazes de interferir de modo discricionário no desenrolar da partida ou do campeonato), semideuses (os craques consagrados) e heróis (aqueles jogadores que mesmo não sendo grandes craques decidem um jogo ou campeonato), a plateia (os torcedores) é conduzida — pela paixão, pelos temores e pelas aflições — à purgação de suas emoções e à catarse final.

Cabe lembrar, ainda, que a tragédia, assim como a comédia grega, nasceu das festas dionisíacas (consagradas a Dionísio, deus do vinho) que propunham a embriaguez, estado que permite o distanciamento do real e a entrada numa outra dimensão.

Não será também o futebol uma festa dionisíaca e inebriante, que nos empolga a todos (notadamente o povo brasileiro), nos redime e nos dá força para superar as vicissitudes da vida e marchar adiante?

“José, para onde?”

* Promotor de Justiça, aposentado, advogado, professor de Direito e escritor 

 

Postagens relacionadas

‘Abaixo a inteligência! Viva a morte!’

Redação 1

El Calafate e a geleira Perito Moreno

Redação 1

O passado sempre manda lembrança 

Redação 2

Utilizamos cookies para melhorar a sua experiência no site. Ao continuar navegando, você concorda com a nossa Política de Privacidade. Aceitar Política de Privacidade

Social Media Auto Publish Powered By : XYZScripts.com