Tribuna Ribeirão
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A mulher inesquecível

Antonio Carlos A. Gama *


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Se a memória não me falha, o extraordinário crítico literário Wilson Martins observa que o capítulo de abertura de “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, teria saído do capítulo II de “Encarnação”, romance de José de Alencar.

Como Machado era amigo e admirador de José de Alencar, a quem considerava o pai da literatura brasileira, e cujas obras não raro eram objeto de apreciação na sua crítica literária, é bem possível que ambos exercessem influência involuntária um sobre outro.

Afinal, falecido José de Alencar, Machado de Assis também se tornou uma espécie de pai postiço do filho daquele, Mario de Alencar, que lhe devotou a mesma afeição e admiração permanentes.

Mas aqui, o caso não é este, e sim o da “mulher inesquecível”, que é umtópos constante em romances e poemas, desde as épocas mais remotas até a atualidade.

Rebeca, do romance e do filme com o mesmo título, foi uma mulher inesquecível.

O que se esqueceu é que o romance foium plágio vergonhoso do romance de Carolina Nabuco. A plagiária apenas acrescentou uma trama policialesca à sua falcatrua.

Capitu, de “Dom Casmurro”, foi eé uma mulher inesquecível, tanto para Bento Santiago como para os leitores.

Helena, a mulher de Menelau, também inesquecível, provocou a Guerra de Tróia. 

Igualmente inesquecível foiMata Hari, fuzilada pelos franceses, que a julgaram e condenaram como espiã alemã, sem haver, absolutamente, prova de que o fosse.

Era apenas uma bailarina e cortesã, que passava por hindu, quando na verdade era holandesa. E Greta Garbo, que a representou no cinema, tornou-se inesquecível, embora pedisse: “I’am to be alone”.

Domitila de Castro, a Marquesa de Santos, tornou-se inesquecível. Parece que era parenta de Inês de Castro, a que depois de morta foi rainha, outra mulher inesquecível, e celebrada por Camões:

“Estavas, linda Inês, posta em sossego.
Dos teus anos em flor colhendo o doce fruito…”

La Gioconda, de Leonardo da Vinci, também é inesquecível. Basta ver o retrato que Leonardo dela pintou, para não a esquecermos jamais. É o enigma do seu sorriso de lábios fechados, o seu olhar, é… não sabemos o que dizer, e centenas de explicações procuraram em vão defini-la.

Que é que têm, ou tiveram, certas mulheres para se tornarem inesquecíveis?

Seriam os olhos, um jeito de falar ou de andar, um perfume, uns braços, um segredo incomunicável, um sorriso que nenhuma outra tem?

Será tudo isso, e mais alguma coisa que não sabemos o que é. Às vezes, um pequeno defeito, um ligeiríssimo estrabismo.

Num conto, “A Perfeição”, de Eça de Queiroz, Ulisses está prestes a deixar a ilha de Calipso, onde viveu magnificamente durante oito anos. A sua jangada já está pronta. E a deusa, que o amou ardentemente na ilha perfeita, em que tudo não perecia, em que os frutos eram sempre dourados, as árvores sempre floridas, os pássaros sempre cantando, o vinho sempre embriagante, pergunta-lhe, antes de o deixar partir – e prevendo as desgraças que lhe ocorreriam –, por que ia embora?

E ele responde que se despedia porque já não suportava ali a paz e a doçura e aquela beleza imortal. “Oh, deusa, o irreparável e supremo mal está na tua perfeição!”. “E,através da vaga, fugiu, trepou sofregamente à jangada, soltou a vela, fendeu o mar, partiu para os trabalhos, para as tormentas, para as misérias – para a delícia das coisas imperfeitas”.

Há algo de insuportável na perfeição. Na brancura eterna da neve, na delícia imperturbável do Jardim do Éden, no céu sempre azul, na imensidão pasmada do oceano, nas águas das fontes sempre a rolarem, na música que não termina nunca. Até o Bolero de Ravel precisa afinal terminar, porque, se continuasse sempre, não aguentaríamos.

Só Deus suporta a própria e eterna perfeição.

Os homens e as mulheres são feitos de contrastes. 

E a mulher inesquecível é inesquecível porque nos amou, mas também nos fez sofrer.

* Promotor de Justiça, aposentado, advogado, professor de Direito e escritor


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