Tribuna Ribeirão
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Além do laboratório: o novo paradigma da Ética em pesquisas clínicas

Rodrigo Gasparini Franco

*
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A promulgação da Lei nº 14.874/2024 marcou um avanço relevante para a pesquisa científica no Brasil, sobretudo na área da saúde. Após anos de debates, a nova legislação trouxe parâmetros claros para a condução de pesquisas com seres humanos, estabeleceu o Sistema Nacional de Avaliação Ética, definiu regras para o fornecimento de medicamentos experimentais após ensaios clínicos e reforçou a interface com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

O texto busca alinhar a ciência nacional às melhores práticas internacionais sem abrir mão do respeito à dignidade dos voluntários.

A principal inovação está na criação do Sistema Nacional de Avaliação Ética. Ele tem como objetivo padronizar os processos de análise de protocolos em todo o país, reduzindo disparidades regionais, assegurando transparência e aumentando a credibilidade das pesquisas. O sistema também amplia a responsabilidade institucional sobre a proteção dos voluntários, consolidando um ambiente de maior confiança para cientistas, instituições e sociedade.

O participante da pesquisa assume lugar central na lei.

O reforço ao consentimento informado, por exemplo, garante que todos compreendam riscos, benefícios e alternativas antes de ingressar em um estudo. Essa medida ganha relevância ao ser articulada com a LGPD, que protege dados pessoais, incluindo os sensíveis relacionados à saúde. A legislação estabelece um duplo dever: preservar a integridade física e moral dos voluntários e assegurar que suas informações não sejam mal utilizadas.

Nesse ponto, a LGPD exerce papel fundamental ao impor limites no uso de dados coletados durante as pesquisas. Exames, prontuários e registros clínicos só podem ser utilizados para finalidades específicas e legalmente justificadas. O tratamento de dados deve, sempre que possível, ser feito por meio da anonimização, reduzindo riscos de exposição e discriminação.

A proteção informacional agrega ao campo científico o princípio da autodeterminação sobre os próprios dados, essencial em um cenário de crescente digitalização e compartilhamento de informações.

Outro aspecto sensível tratado pela lei é o fornecimento de medicamentos experimentais após a finalização dos estudos clínicos. Muitos pacientes, ao participarem de ensaios, tinham acesso a terapias ainda não disponíveis no mercado, mas perdiam esse benefício ao término do protocolo.

Agora, a lei garante critérios objetivos para que o tratamento continue quando a interrupção puder representar ameaça à saúde do participante. Trata-se de uma medida que impede a instrumentalização dos voluntários apenas como meios de validação científica, reforçando o compromisso com a equidade.

Esse fornecimento contínuo, contudo, também envolve coleta e armazenamento de dados clínicos por períodos prolongados. Nesse ponto, a interação com a LGPD volta a ser decisiva: informações sobre efeitos adversos, evolução terapêutica e respostas individuais só podem ser utilizadas dentro de parâmetros legais rígidos, protegendo tanto a saúde quanto a privacidade.

Assim, ética médica e proteção informacional se tornam dimensões complementares da mesma política pública.

A lei fortalece ainda o papel dos comitês de ética em pesquisa, agora integrados formalmente ao Sistema Nacional de Avaliação Ética. Essas instâncias passam a ter função de acompanhamento não apenas inicial, mas também contínuo, monitorando a condução real dos ensaios e assegurando que normas de segurança e proteção de dados sejam cumpridas. O conceito de ciência responsável é, assim, sustentado por mecanismos institucionais mais sólidos.

Embora regulamentações complementares ainda sejam necessárias, a Lei nº 14.874/2024 consolida avanços significativos para a ciência e para a sociedade. Ao registrar em lei a centralidade da dignidade humana, ao lado da proteção de dados pessoais, o texto fortalece a confiança pública na pesquisa clínica e dá previsibilidade ao setor.

O ambiente legislativo mais seguro tende a estimular novos investimentos, acelerar descobertas e evitar abusos, aproximando o país de padrões globais de regulação científica.

No plano internacional, a lei pode projetar o Brasil como protagonista em pesquisa clínica ética e transparente, um diferencial em um mercado altamente competitivo. Mais do que normas, o novo marco legal representa a tentativa de estabelecer equilíbrio entre inovação e responsabilidade.

O desafio que se impõe, daqui em diante, é assegurar que sua implementação corresponda aos princípios que a inspiraram: a ciência como motor de progresso, mas sempre orientada pelo respeito à vida, à dignidade e à proteção integral dos participantes.

* Advogado e consultor empresarial de Ribeirão Preto, mestre em Direito Internacional e Europeu pela Erasmus Universiteit (Holanda) e especialista em Direito Asiático pela Universidade Jiao Tong (Xangai)

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