Edwaldo Arantes *
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Mineiros carregam um trem de tralhas, cacarecos, bugigangas e quinquilharias no coração.
Também, levam consigo dentro do “emborná”, literatura, timidez, amizade, hospitalidade e a “cabeça baixa”.
Para onde vão levam as lembranças, o riso tímido, o olhar de soslaio, os ouvidos para ouvir tudo e se der uma “brechinha”, um “dedo de prosa”, vem fácil.
Se não souberem do que falam, com a calma das montanhas detalham tudo quantas vezes for preciso, num jeito de rio que corre nunca do mesmo jeito, acrescentando sempre algo novo.
São as bagagens sem pesos, o vento, a chuva, o murmúrio do riacho, a braveza torrente da cachoeira, o chapéu, o ranger das botinas e o caminhar com os olhos depositados ao chão, um palheiro atrás da orelha, mascando um raminho no canto da boca.
Um “trem bão” que a cada estação abastece seus pertences com esperanças, “o trem da chegada é o mesmo trem da partida”, sentimentos lindos como a primeira vez.
Esperando o trem parar na estação, um festival de encontros, uma festança de lembranças e causos, regado a cachacinha de Salinas, leitão a pururuca, feijão tropeiro, frango com quiabo, vaca atolada, tutu, couve na manteiga, torresmo e tudo sobre as trempes das fumegantes labaredas aquecendo o charme do fogão a lenha.
Na mesa nunca desfeita, café, pão de queijo, broa de fubá, biscoito de polvilho, doce de leite, goiabada e o queijo da Canastra.
Passar a existência deliciando-se com a capacidade de olhar tudo com quietude, fortalecer a liberdade de ser o que são, quando, recolhem-se à íntima solidão criando narrativas no domínio das palavras dando nova vida a elas, como o fez, João Guimarães Rosa: Ensimesmado, caburé, jeribamba, entalagado, suspirância, circunstristeza, sorrateiro, compatrícios, contubérnios, cubiçosos e a riqueza do vocabulário criativo de “Grande Sertão, Veredas”.
Não narrava apenas histórias, construía uma rica linguagem com sons, ritmos e sentidos, enfim, um mago das palavras.
Minas com seus mistérios, gestos, ditos e sabedorias criaram mitos, trajetórias, e caminhos valorizando e incentivando a convivência, solidariedade, pureza e cumplicidade, tão presentes e fundamentais ao convívio.7
Não é simplesmente a cronologia de um ser, uma pessoa, um indivíduo, apenas todos que vão fazer deste trem as viagens para o sentido da vida, dos “encontros e despedidas”, da força das existências ao soar o apito, deslizando sobre os trilhos e batentes, trazendo nos vagões corações ansiosos das chegadas e melancolias das partidas.
Os trens carregam em suas idas e vindas duas incógnitas jamais decifradas, a vida e a morte, suas alegrias e desalentos.
Recentemente o trem não parou, apitando direto para a eternidade, levando consigo um passageiro ilustre, competente e talentoso advogado, professor e mestre, Dr. Marcelo Viana Salomão.
Deixou na estação a saudade travestida em continuar, dois baluartes das ciências jurídicas, um partiu e o outro ficou para renovar a esperança de lutar pela liberdade, justiça, o bem comum, e a livre e soberana determinação dos povos, como sempre, ensina e pratica.
Entre muitas mensagens que tenho o privilégio e a honra de receber do Dr. Brasil, lembrei-me quando falava eu das perdas em Guimarães Rosa, “as pessoas não morrem, ficam encantadas”.
Teci humildemente uma frase, pensando o Rosa, “mineiro não morre, só nasce”.
O Dr. Brasil Salomão comentou:
“Vou palpitar”. “É que me lembro de ler alhures que o mineiro não morre, mas, apenas, entra no rio e depois da primeira curva não se o vê mais”.
“E para não mais tomar seu tempo, confessando minha amizade por você, citaria Nelson Rodrigues, quando disse, “amigo é a desesperada utopia que todos nós perseguimos até a última golfada da vida.”
Consternado, abalado e acometido de profunda tristeza, envio meus pesares ao Dr. Brasil, Dona Lúcia Helena Viana Salomão e toda a amada família.
No trem de todos nós e daqueles que se foram o senhor, meu amigo querido, foi magistralmente ungido “Maquinista” e “Comandante”, que um dia, não tenho dúvidas, vai parar na estação e conduzir-nos ao encontro de tudo que perdemos.
“Que a saudade dói como um barco, que aos poucos descreve um arco e evita atracar no cais”… Chico Buarque.
“A coisa não está nem na partida, nem na chegada, mas na travessia”, João Guimarães Rosa.
* Agente cultural

