Antonio Carlos A. Gama *
O juiz de direito, doutor Bonifácio, me telefonou, às oito e meia da noite, pedindo que fosse com urgência à sua casa. Fazia pouco mais de três meses que ele se mudara para a cidade, promovido de outra comarca. Até então ninguém sabia que homem era.
Parecia soturno, mas sagaz. Havia participado de algumas audiências com ele, que fazia o oficial de justiça Caetano sacudir uma sineta e apregoar as partes. Presidia a sessão sempre de toga com um olhar que ora parecia de enfado, ora de ironia.
Ou ambos ao mesmo tempo. Na sua casa, encontrei o promotor de justiça, o escrivão Miro, o colega advogado doutor Damásio, o prefeito municipal e médico, doutor Nogueira. Pensei que o Juiz nos convocava para discutir os problemas da comarca e, principalmente, a reforma ou a construção de novo edifício para o fórum, que o velho parecia o Palácio do Drácula. Sentados os convidados ao redor da mesa, na sala, o juiz andava de um lugar para outro.
Afinal, parou e, ainda de pé, nos disse: – Quero que o que vou revelar aqui fique em sigilo. Os senhores prometem? Prometemos. Refleti que, talvez, ele viesse tocar em alguns segredos de polichinelo da comarca: escândalos e bandalheiras a que se devia pôr um fim.
O escrivão Miro, ciciante, já devia ter-lhe cochichado poucas e boas, resguardando-se do que se falava de sua própria mulher. E sem dizer a que águas vinha, engasgado, o doutor Bonifácio soltou a bomba: – Acabo de matar minha mulher.
Deu um acesso de tosse no escrivão, e o promotor quase tombou da cadeira. O doutor Damásio, que era muito mesureiro e não entendera bem o que dissera o Juiz, sorriu: – Meus parabéns… Pisei-lhe no pé debaixo da mesa. O promotor levantou-se e perguntou: – Mas… como?
O escrivão continuava tossindo e o juiz foi buscar-lhe um copo d’água. O promotor, na breve ausência do dono da casa, observou: – É preciso tomar providências imediatas. Mas o juiz ouviu-o e respondeu: – Amanhã as providências serão tomadas. Eu não vou fugir… O doutor Nogueira indagou: – Mas… e o corpo?
É preciso examiná-lo. Quem sabe o senhor se enganou e a morte é só aparente… O juiz balançou a cabeça. – Não é só aparente não, doutor…Ela está caída no tapete do quarto, lá em cima, há mais de uma hora.
Esganei-a com essas próprias mãos! E olhou as mãos. Mãos enormes, o dorso peludo, os dedos grossos.
O doutor Bonifácio era também enorme, grosso, bigodudo, de pescoço taurino. Devia pesar mais de noventa quilos. Era capaz, com cada uma das mãos, de esganar ao mesmo tempo o escrivão Miro e o doutor Damásio.
O doutor Damásio pôs-se à disposição do Juiz: – Aqui, eu e o colega podemos defendê-lo. De certo o doutor agiu em legítima defesa. Imaginei que legítima defesa era com aquele urso peludo agarrando a mulher pelo pescoço e sufocando-a.
O promotor ponderou: – A minha presença aqui é inconveniente. Tenho o meu dever de ofício, que o senhor coartou com a promessa de sigilo. Em todo caso, espero até amanhã, com as providências também prometidas.
O juiz concordou: – O doutor pode retirar-se. Fique sossegado, mantenho a minha palavra. Sem saber o que fazer, ou o que pensar, também nós nos levantamos para ir embora. Saímos todos e separamo-nos na pracinha, onde ficava a casa, sem uma palavra.
A tragédia daquela noite nos deixara estupefatos. Dei uns passos pelas alamedas, na noite fresca e quieta, e parei. Até então, não tivera nenhuma notícia de que o doutor Bonifácio fosse casado, ou que trouxera consigo a mulher ou a companheira. Ninguém vira mulher nenhuma com ele, desde a sua chegada. A secretária do fórum, trintona, solteira, parece que me havia dito:
“O juiz é um homenzarrão. E um bom partido…Não me chamo Ismênia, se não o fisgar.” Ela devia saber o que dizia, as mulheres sempre sabem. Voltei os passos para o sobradinho do juiz, para lhe dar bem dada uma banana. O doutor Bonifácio estava debruçado na janela iluminada, olhando para fora. E, antes que eu lhe desse a minha banana, ele me deu a sua.
* Promotor de Justiça, aposentado, professor de Direito, advogado e escritor

