Por Adalberto Luque
Na manhã de 24 de setembro, na rua Campos Salles, Edifício Jatiúca, Centro de Ribeirão Preto, um dos crimes mais audaciosos da história da cidade começou a ser executado. Em poucas horas, moradores e funcionários de um prédio de luxo, com um apartamento por andar, sofreram um golpe que resultou em prejuízo de R$ 4 milhões.
A ação, no entanto, havia sido planejada meses antes. Organizações criminosas da Grande São Paulo e de Ribeirão Preto se uniram para estruturar o plano. Depois se descobriu que esse roubo foi o segundo crime altamente organizado praticado na cidade, com vários integrantes participando dos dois casos.
A partir de informações privilegiadas fornecidas por uma conhecida da família de uma residência no Condomínio Villa Verde, na Ribeirânia, zona Leste, um grupo de criminosos de Ribeirão Preto começou a planejar o assalto, ciente de que a casa abrigava muitas joias.
Paralelamente, uma organização criminosa formada por moradores da Capital e do litoral identificou potenciais alvos no Edifício Jatiúca, utilizando a plataforma Rainha — originalmente destinada a análises financeiras, mas usada indevidamente para levantar dados patrimoniais das vítimas.
Os criminosos da Capital chamaram o grupo local para participar do planejamento, mas os ribeirão-pretanos já estavam focados no roubo das joias na Ribeirânia. Decidiram, então, unir forças, considerando o maior “know-how” dos paulistanos. As investigações também apontaram para outras 13 potenciais vítimas além dos dois roubos consumados.

Mãos à obra
Com informações privilegiadas sobre patrimônio e rotina da família da Ribeirânia, a data do assalto foi marcada. As investigações indicam que 12 pessoas participaram da ação, direta e indiretamente.
Dois irmãos vieram de São Paulo com funções específicas. Um deles deveria apenas retirar o miolo da fechadura de um imóvel para alugar na avenida Costábile Romano, que fazia fundos com o condomínio e com a casa alvo do assalto. O outro ficou responsável por dirigir o carro que levaria os executores e garantir a fuga.
Na manhã de 17 de maio, câmeras de segurança registraram alguns homens visitando o imóvel. À noite, voltaram. Dessa vez, para o assalto. Nos fundos, cortaram a cerca elétrica e a concertina e entraram na casa pela divisa do condomínio. Lá estavam um casal de idosos, o filho e uma cuidadora. Todos foram rendidos pelos quatro criminosos que invadiram o local, agindo com violência e ameaças.
Os assaltantes fugiram com 300 peças de joias, oito relógios Rolex e dinheiro vivo. O prejuízo foi de R$ 5 milhões. O grupo se dispersou, e o caso foi registrado, mas sem suspeitos identificados inicialmente.
Enquanto isso, o plano do segundo crime avançava, ainda mais sofisticado. Mas um detalhe comprometeria toda a operação.
As joias do roubo na Ribeirânia foram repassadas a um joalheiro de Ribeirão Preto, que as enviou a outro em Uberaba (MG). Este, por sua vez, vendeu para um grupo de Curitiba (PR), que comercializava joias pela TV e internet, em rede nacional.
Uma das vítimas viu algumas de suas peças — uma delas produzida exclusivamente por um joalheiro de Ribeirão Preto. Ela recomprou as joias e as levou à Divisão Especializada de Investigações Criminais (DEIC). O delegado Diógenes Santiago iniciou então uma investigação reversa, partindo do receptador até chegar aos autores do crime.
A polícia passou por Curitiba, seguiu para Uberaba e chegou novamente a Ribeirão Preto, onde o joalheiro foi preso. Outro participante do roubo também foi detido. O erro não se repetiria no assalto seguinte: as joias não seriam vendidas integralmente.

As investigações avançaram e, no início de novembro, 12 pessoas já haviam sido identificadas. Quatro delas — incluindo a mulher que repassou as informações privilegiadas — foram presas no início deste mês. Além da informante, foram detidos os dois irmãos na Capital e outro homem no Guarujá.
As primeiras prisões, do joalheiro e de um integrante do grupo, ocorreram no início de setembro. Ainda assim, a organização criminosa manteve o planejamento do segundo crime, com ainda mais rigor.
Crime cinematográfico
Os criminosos instalaram câmeras em postes para monitorar a rotina dos moradores. Usaram aparelhos capazes de clonar, à distância, controles de acesso a portões. Tinham um rádio que captava a frequência da Polícia Militar e monitoravam redes sociais de vítimas e parentes, obtendo informações relevantes. A tecnologia foi usada em todas as etapas do crime.
Os receptadores, também integrantes do esquema, providenciaram os carros usados no assalto — veículos clonados e compatíveis com o padrão do edifício. Eles ainda compraram perucas, capuzes e gorros para ocultar a identidade dos executores. E algumas mulheres foram chamadas para compor a ação.
Semanas antes do assalto, uma jovem procurou uma imobiliária com interesse em alugar um apartamento no Edifício Jatiúca. Era Júlia Moretti de Paula. Ela se ofereceu para pagar o depósito caução de R$ 12 mil em dinheiro vivo, mas a imobiliária preferiu receber por pix, enviado da conta de outra mulher ligada à logística do grupo. O delegado André Baldochi dividiu o esquema em três núcleos: financeiro, logístico e operacional, como se viu depois, no início das investigações.
Instalada no 13º andar, Júlia chegou na noite anterior ao crime acompanhada de outras quatro pessoas. Entraram pela garagem e subiram pelo elevador. Depois se descobriu que as mulheres eram, na verdade, homens disfarçados.

Na manhã de 24 de setembro, Jéssica e os quatro que passaram a noite no local desceram, renderam o porteiro e, aos poucos, funcionários e moradores que chegavam ou desciam para a garagem. Todos foram levados a uma sala e mantidos sob vigilância por dois criminosos. Também abriram os portões para os outros comparsas — dez no total, segundo as investigações — rendiam moradores, obrigando-os a realizar PIX e os forçavam a acompanhar até seus apartamentos, onde roubavam joias e outros objetos de valor.
Os celulares das vítimas foram recolhidos, impedindo que avisassem a polícia. O monitoramento indicou o momento de fugir. Por volta das 9h30, os criminosos correram para os três carros já posicionados na garagem e deixaram o prédio em menos de um minuto, cientes de que a PM havia sido acionada. O prejuízo estimado foi de R$ 4 milhões.
A casa caiu
O delegado André Baldochi chegou ao edifício antes das 10h e iniciou a apuração. A mulher que havia feito o PIX do depósito caução da imobiliária foi identificada e presa, junto com outro integrante do núcleo logístico, em um apartamento no Ipiranga, zona Norte.
No local, a polícia encontrou perucas, parte das joias, dinheiro e objetos usados pelos criminosos na véspera do assalto. Na garagem, um dos carros usados na fuga — posteriormente confirmado como clonado.

Segundo Baldochi, nem todas as joias foram recuperadas porque muitas já haviam sido derretidas. Parte das joias derretidas renderam R$ 280 mil, dos quais R$ 100 mil foram recuperados.
As prisões prosseguiram. Em menos de dois meses, 17 pessoas foram identificadas e 15 presas. A última foi justamente Júlia Moretti de Paula, detida em 24 de novembro, dois meses após o arrastão. Ela se entregou em Araçatuba, sob condição de não ser transferida para Ribeirão Preto — o que já ocorreria, pela lei, por ter sido presa em outra região por mandado de prisão preventiva. Seu advogado alegou que ela foi obrigada a participar do crime. A versão não foi aceita por um dos promotores, Paulo Freire Teotônio.
A promotora Ethel Cipele informou ter pedido a prisão preventiva de todos os 17 envolvidos. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) acatou o pedido, assim como o feito pela Polícia Civil. Eles só deixam a prisão se obtiverem habeas corpus em instância superior.
Baldochi informou, na última semana, que o inquérito foi concluído. O MP apresentou denúncia contra os 17 identificados, acatada pela Justiça — agora todos são réus.
Os dois foragidos são receptadores, que também integram o grupo e estão sendo procurados. As investigações ainda prosseguem, pois podem apontar outros eventuais envolvidos.
A Polícia Civil atuou com rigor e, a exemplo dos criminosos, com organização e usando a tecnologia a seu favor. Como disse Baldochi, foram utilizadas modernas técnicas de investigação, quebra de sigilos fiscais e telefônicos e até delação premiada. A polícia usou todas as armas legalmente disponíveis e conseguiu desmontar o esquema que usava armas não legais para tentar levar vantagem.

No crime da Ribeirânia, 12 pessoas foram identificadas. Algumas participaram dos dois crimes, como já foi mencionado. O MP já ofereceu denúncia para os suspeitos, mas estes ainda não se tornaram réus, pois aguardam a decisão da Justiça, se acata ou não o pedido da promotoria.
Com esses casos, é possível concluir que mínimos detalhes levaram os criminosos a ficar sem chão. Por outro lado, fica o alerta às vítimas e a outras potenciais vítimas quando à exposição em redes sociais. Criminosos hábeis conseguem, com pouco, levantar muito de suas vítimas. E, do lado da lei, as Polícias Civil e Militar, o MP e a Justiça há a constatação de que, agindo em conjunto, facilitando o combate a um crime tão sofisticadamente organizado.
Mas ainda é preciso mais. Durante coletiva onde Polícia Civil e MP detalharam os dois casos, o promotor Paulo Freire Teotônio fez um alerta sobre a necessidade de investimentos na Polícia Civil. “Essa associação criminosa estava há anos luz dos investimentos que a polícia têm no Estado de São Paulo. É outra preocupação que a gente tem sim, não vão gostar de falar isso. Mas precisa investir na Polícia Civil. E precisa ser agora. Porque [não é] só com material humano, que eles têm de sobra – de qualidade, mas não em número. E equipamentos quase nada. Passou da hora [de investir]”, conclui Teotônio.

