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Geopolítica à brasileira: intervenção estrangeira com legenda bíblica

Foto: Arquivo

André Luiz da Silva *
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O recente anúncio do governo dos Estados Unidos, impondo uma tarifa de 50% sobre produtos brasileiros exportados para aquele país, provocou compreensível agitação no cenário político e econômico nacional. A medida, para além de seus efeitos comerciais imediatos, representa um gesto de profunda repercussão diplomática, marcada por justificativas frágeis, inverdades documentadas e uma clara ingerência sobre questões de soberania nacional.

Em meio a reações políticas esperadas — manifestações de líderes partidários, notas diplomáticas e análises setoriais — chamou atenção a resposta de um ex-presidente da República: a publicação de um versículo bíblico extraído do livro de Provérbios (29:2): “Quando os justos governam, o povo se alegra. Mas quando os perversos estão no poder, o povo geme.” A opção por uma citação religiosa no lugar de argumentos técnicos ou posicionamentos institucionais revela mais do que uma preferência pessoal. Expõe uma estratégia discursiva cada vez mais frequente na política contemporânea: o uso da fé como ferramenta simbólica de mobilização e legitimação.

Historicamente, a religião tem desempenhado um papel ambivalente na política. Pode servir de inspiração ética e humanizadora, mas também pode ser convertida em instrumento de manipulação ideológica. A fronteira entre fé autêntica e exploração simbólica é tênue, e seu atravessamento tem consequências profundas. Quando lideranças recorrem a textos sagrados sem o devido cuidado exegético — ou seja, sem respeitar o contexto histórico, linguístico e teológico da passagem — correm o risco (muitas vezes deliberado) de distorcer sentidos originais para fins político-eleitorais.

O livro de Provérbios, cuja autoria principal é atribuída ao rei Salomão, é uma coletânea de sentenças sapiencais destinadas a formar moralmente os líderes e o povo de Israel. Salomão, figura emblemática da tradição judaico-cristã, é lembrado por sua sabedoria, mas também por seu declínio ético e político ao final de seu reinado. Curiosamente, o capítulo 29 — do qual o versículo citado foi extraído — traz advertências claras aos governantes, exortando-os a agir com justiça, escutar os pobres e rejeitar a arrogância.

Versículos como o 7 (“O justo se informa da causa dos pobres, mas o ímpio nem sequer toma conhecimento”) ou o 14 (“O rei que julga os pobres conforme a verdade firmará o seu trono para sempre”) constituem uma crítica contundente ao distanciamento entre poder e justiça social. O versículo 22 denuncia a violência como método político (“O homem iracundo levanta contendas; e o furioso multiplica as transgressões”), e o 23 encerra com uma lição que o mundo contemporâneo parece esquecer com frequência: “A soberba do homem o abaterá, mas a honra sustentará o humilde de espírito.”

O Brasil é uma República laica. Isso significa que, embora os indivíduos tenham o pleno direito de manifestar sua fé, as instituições do Estado devem ser regidas por princípios racionais, impessoais e universais. A laicidade é um pilar da democracia moderna — protege a liberdade religiosa e, simultaneamente, impede que crenças específicas sejam instrumentalizadas para impor visões políticas ou suprimir direitos.

É nesse ponto que a crise atual revela sua gravidade. Vivemos um momento em que a busca desmedida pelo poder alimenta narrativas polarizadoras, que confundem patriotismo com submissão ideológica, e espiritualidade com justificação de projetos autoritários. Alguns setores da sociedade, movidos por desinformação ou por ressentimentos legítimos, acabam clamando por soluções antidemocráticas, por intervenção estrangeira e por medidas econômicas que, paradoxalmente, atentam contra os próprios interesses nacionais.

A História mostra que a distorção do sagrado para fins de dominação política não é nova — mas sempre trágica. Cabe, portanto, um chamado urgente à razão: é necessário resgatar o espírito crítico, compreender a complexidade dos textos religiosos, reconhecer os limites entre fé e política, e, acima de tudo, valorizar as instituições que sustentam o Estado Democrático de Direito.

Mais do que nunca, precisamos de cidadãos conscientes, informados e vigilantes. Que saibam ler as Escrituras — e a realidade — com discernimento. Que reconheçam que justiça social, soberania econômica e ética pública não se constroem com frases de efeito ou versículos isolados, mas com políticas públicas, responsabilidade institucional e compromisso com a verdade.

* Servidor municipal, advogado, escritor e radialista

 

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