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Lobos na ceia de Natal


Lucius de Mello *



Por essa, nem o francês Charles Perrault, autor mais conhecido por registrar e popularizar o conto “Chapeuzinho Vermelho” nem o australiano Joseph Jacobs, criador da versão mais famosa de “Os Três Porquinhos”, esperavam. A clássica figura do lobo mau, quem diria, se arrependeu, virou vegetariana e entrou no clima fraterno e cristão do Natal.

Roubou a cena do Papai Noel. Essa virada na imagem de um dos mais temidos personagens das histórias infantis – que transforma o vilão da floresta, num herói improvável, foi idealizada numa a campanha publicitária que viralizou em minutos e conquistou milhões de fãs em todo mundo.

Lançado, recentemente, no começo de dezembro, em três dias, o vídeo já teve mais de 30 milhões de visualizações. Criado pela agência Romance sediada em Paris e pelo Illogic Studios, o filme é cem por cento francês, sem Inteligência Artificial e foi elaborado para a ser a grande mensagem natalina de fim de ano da rede de supermercados francesa Intermarché.

Com dois minutos e trinta segundos, o anúncio mistura atores e desenho animado para contar a história de um lobo que se sente mal-amado e que decide virar vegetariano para conquistar a amizade dos outros animais e, assim, ter uma festa de Natal rodeado de amigos.

“Quando a Intermarché nos procurou para criar um novo filme de Natal, escolhemos a animação por seu toque mágico”, explica Victor Chavalier, redator da Romance. O lobo, diz Chavelier, “é um personagem muito humano. Ele se sustenta sozinho e está cansado de ser lobo mau. Assim que fizemos o roteiro consultamos o estúdio de animação para dar vida a ele”.

Tudo começa numa tradicional e animada reunião de família, na noite da celebração cristã, na qual o tio presenteia o sobrinho, de máximo seis anos, com um lobo de pelúcia. A criança se assusta e rejeita o brinquedo. A mãe tenta amenizar o constrangimento da cena e diz: “Ele tem medo de lobos”.

O tio, então, explica ao menino que aquele era um lobo bom, regenerado; ele improvisa e começa a contar a todos a história do bicho que se arrependeu de suas maldades, deixou de ser carnívoro e se tornou vegetariano. Neste momento, os atores são substituídos por desenhos.

Entra o lobo mal-amado caminhando solitário sobre a neve na floresta. Ao se aproximar da bicharada que montava a árvore de Natal, todos saem correndo; um porco espinho mais corajoso comenta: “também se você não comesse todo mundo!” E o lobo responde:

“Eu sou um lobo. O que você quer que eu coma?” E o porquinho explica: “Não coma gente nem bichos, há cenouras, cogumelos, frutas, legumes…” E a fera pergunta: “Como se caça legumes?” O lobo, então, volta solitário para sua toca e começa a ler livros sobre pratos vegetarianos.

Rapidamente prepara e consome receitas com champignons e castanhas, tortas com alho-poró, fica viciado em cerejas que deixam sua boca toda vermelha; o que ainda causa um certo terror aos vizinhos… Mas a verdade, é que o lobo, outrora mau, convence a todos que se tornou inofensivo e acaba sendo aceito para se sentar à mesa na ceia de Natal da floresta.

O lobo sorridente brinda com os novos amigos e, assim que termina essacena, voltam os atores; surge o tio terminando de contar a história à família; ele sorri ao perceber que o sobrinho já dormia abraçado ao lobo de pelúcia. No finaldo vídeo,surge a mensagem da rede de supermercados Intermarché:

“Todos nós temos uma razão para comer melhor.” Importante realçar que o número de vegetarianos na França é muito baixo. Menos de 5% da população francesa são adeptos ao vegetarianismo. Já no mundo, segundo estimativas internacionais, são 625 milhões de vegetarianos – 5 a 8% da população do planeta. Acredito que o lobo arrependido do comercial, com todo esse sucesso, vá incrementar esses índices. 

Ainda neste Natal, a imagem do lobo bom da Intermarché deve ser imortalizada em brinquedos de pelúcia.

O filme publicitário foi todo sonorizado com a canção “Le mal aimé” de Claude François, sucesso em 1974 e que, agora, está no topo das plataformas de streaming.Música que deixa o protagonista da campanha com um ar ainda mais carente.

De infantil e lúdico, o anúncio não tem nada.

Além de uma tentativa de convencer um menino a perder o medo do presente de Natal ou uma estratégia comercial para atrair mais consumidores para uma rede de supermercados ou ainda para melhorar nossos hábitos alimentares, essa campanha sim, resgata, em todos nós, o verdadeiro espírito natalino; ilumina o amor, a empatia, o sacramento do perdão, o respeito; no entanto, acima de tudo isso, é um espelho impiedoso a nos oferecer a chance de encarar nossos próprios medos e imperfeições e conviver com eles; a oportunidade preciosa do autoconhecimento, da reinvenção e do recomeço que precisamos sempre nos permitir para nos tornarmos pessoas melhores, mais humanas e mais felizes.

O lobo inquieto, reflexivo e mal-amado representa um pouco de cada um de nós. Como sugeriu o alemão Herman Hesse (1877-1962), em seu clássico O Lobo da Estepe, a dualidade homem-lobo é rasa e simplificadora. Porém, segundo Hesse, dentro de cada ser humano há centenas, milhares de outros seres, enfim, a personalidade humana está sujeita a uma infinidade de atitudes ramificada numa complexa rede de diferentes labirintos. 

Link para assistir aovídeo: 
https://youtu.be/Na9VmMNJvsA?si=_Y7fOCJnBFCcQEj0

* Doutor em Letras pela USP e Sorbonne Université-Paris. Autor da tese A Bíblia segundo Balzac: Deus, o Diabo e os heróis bíblicos em A Comédia Humana. Jornalista, escritor e finalista do Prêmio Jabuti em 2003

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