Rodrigo Gasparini Franco *
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O avanço das apostas online saiu da esfera do entretenimento para invadir o cotidiano das empresas. No ambiente corporativo, o fenômeno já se traduz em prejuízos concretos: queda de produtividade, distrações prolongadas, endividamento pessoal e, em situações extremas, fraudes internas que abalam a confiança e expõem riscos de compliance. Esse contexto faz crescer o número de ações na Justiça do Trabalho para definir se jogar durante o expediente — ou a dependência em jogos de azar — pode justificar a demissão por justa causa. A moldura legal passa, em regra, pelo artigo 482 da CLT, que contempla hipóteses como desídia, indisciplina e a “prática constante de jogos de azar”.
Nos tribunais, consolidou-se uma orientação prática: quando há provas robustas do uso do tempo de trabalho para apostar, utilização de equipamentos e redes da empresa para acessar plataformas de jogo ou condutas associadas, como incentivar colegas a apostar, as cortes têm mantido a dispensa por justa causa. O caso do Magazine Luiza, no Rio Grande do Sul, tornou-se um símbolo desse movimento. Uma assistente de vendas desviou R$ 53,6 mil do caixa para sustentar apostas, confessou a prática e acabou demitida por justa causa, além de condenada a ressarcir o dano material. A decisão ressaltou a quebra de confiança e o dolo, afastando a tese de perdão tácito.
Em São Paulo, a 2ª Vara do Trabalho de Barueri manteve a justa causa aplicada a uma funcionária que realizava apostas no celular durante a jornada. A sentença enfatizou a proporcionalidade entre falta e sanção, destacando a existência de normas internas sobre uso de celular, postagens em redes sociais que corroboravam o hábito e depoimentos que apontavam a reiteração da conduta. Em decisões correlatas, juízes têm enquadrado o comportamento em desídia e indisciplina quando há violação de políticas corporativas de tecnologia, reforçando a necessidade de documentação prévia, com advertências e suspensões, antes da penalidade máxima.
Esse rigor, no entanto, convive com freios bem definidos. Cortes regionais têm revertido a justa causa quando faltam requisitos clássicos do direito disciplinar trabalhista. A imediatidade é um deles: a demora entre o conhecimento do fato e a punição pode sugerir perdão tácito. Outro é a proporcionalidade e a gradação das penas, sobretudo quando não há histórico de advertências que justifique o salto direto para a dispensa motivada. Em um caso julgado pelo TRT-2, a penalidade foi afastada porque a rescisão correta era por pedido de demissão da trabalhadora, além de não ter ficado comprovado o escalonamento das sanções. Em outra frente, quando o adoecimento está documentado e o empregado se encontra temporariamente inapto, a dispensa pode ser anulada, com reintegração ou acordos substitutivos, como ocorreu em Vitória (ES) com um trabalhador em tratamento psiquiátrico demitido sob a alegação de vício em “bets”. Há ainda precedentes noticiados de reversões que iluminam a tênue fronteira entre conduta faltosa e patologia, como em caso no TRT-5 envolvendo empregado de instituição financeira.
A interface com a saúde pública é central. A Organização Mundial da Saúde reconhece a ludopatia como transtorno, com classificação CID F63.0 (jogo patológico) e Z72.6 (mania de jogos e apostas). Esse reconhecimento repercute na gestão de pessoas, nas perícias e nos afastamentos previdenciários. Em termos práticos, empresas são instadas a aprimorar políticas de uso de dispositivos e redes, bloquear o acesso a sites de apostas no ambiente corporativo, treinar lideranças para identificar sinais de dependência e registrar ocorrências de forma minuciosa. A transparência das regras e a consistência na aplicação de medidas disciplinares, em especial a gradação das penas, têm sido decisivas para sustentar a validade de demissões por justa causa.
O recado das decisões recentes, portanto, é relativamente claro. Quando o dossiê probatório é sólido e a resposta disciplinar observa proporcionalidade e imediatidade, a justa causa por jogo de azar durante o expediente tende a ser mantida. Quando a punição é desproporcional, tardia ou desconsidera um quadro clínico devidamente atestado, prevalece a proteção ao vínculo e à dignidade do trabalhador. Na outra ponta, o próprio crescimento dos casos sugere atenção redobrada de empresas e poderes públicos para prevenção, tratamento e educação sobre os riscos do vício em apostas — uma agenda que transborda os limites do contrato de trabalho e toca, cada vez mais, a saúde coletiva e a responsabilidade social.
* Advogado e consultor empresarial de Ribeirão Preto, mestre em Direito Internacional e Europeu pela Erasmus Universiteit (Holanda) e especialista em Direito Asiático pela Universidade Jiao Tong (Xangai)

