Tribuna Ribeirão
Artigos

Na solidão surgem palavras   

Edwaldo Arantes * 
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Não sou capaz de pensar muito sobre o que escrevo ou o que tento levar ao papel. 
 
Não fixo em determinados fatos ou assuntos, mesclo viagens, infâncias, trabalhos, bailes, bancos escolares, escolhas e trajetórias. 
 
Tento descrever todo o percurso da existência entre vitórias e derrotas, presente e passado e as incertezas do futuro. 
 
Um armazém na penumbra, um vidro da janela quebrado, a igreja com seus mosaicos, preces, terços, dogmas, procissões, meu temor com imagens seguindo-me com os olhos, parecem vivas, assustando o menino ingênuo que àquela época acreditava maravilhado em promessas das escrituras. 
 
As tábuas rangendo ante meu andar, carnes secas penduradas, queijos, cachaças, panelas fumegantes, cheiros brotando do crepitar e os estalos das lenhas. 
 
Com palavras desenho um riacho sussurrando segredos em colóquios com as pedras, mandacarus sob o sol escaldante, árvores secas sobrevivendo na aridez do sertão mineiro, mas, “onde tem Buriti, tem água”. 
 
Em um lampejo relembro minha filha Marina, “pititinha” em uma viagem aventureira e improvisada rumo a um lugarejo onde adentramos um velho e acanhado armazém incrustado ao nada, conduzidos pela desconhecida e solitária estrada.  
 
Em um balcão descascado vítima do tempo ela pede um pão de queijo recheado com linguiça, daquelas onde os gomos sobram saindo pelos lados.  
 
Peço uma cerveja servida quase morna, defendo-me dela junto a uma “Salinas“, a senhora proprietária do lugar “puxa conversa”, contando “causos” misteriosos e intrigantes, 
 
Narra sobre uma moça que cantava apenas nas madrugadas recebendo o amado já falecido, canções, beijos e ardores intermináveis que desapareciam ao alvorecer retornando na outra noite, assim, eternamente. 
 
Acredito que meus textos misturam sem quaisquer explicações tudo que imagino, vivi e vivo, um mundo inexplicável que acredito, nunca existiu. 
 
Gosto de garimpar palavras sempre às madrugadas,  com desgosto assisto a alvorada, a manhã avança, buzinas, esbarrões, ruas lotadas, tarefas, suores, horários, almoços discutindo metas, mercados, corporações, balanços e lucros incessantes. 
 
A miséria em trajes maltrapilhos à porta suplicando aos ternos “Armani” com acessórios “slim”, sapatos em couro “chamois”, alguns míseros trocados. 
 
A prepotência desdenha, seguem indiferentes e soberbos em suas sofisticadas gravatas oriundas do “Como” ao norte da região da Lombardia, mundialmente famosa pela suas sedas reservadas a um seleto grupo. 
 
A metrópole consome o que ainda resta da pureza e alegria da infância, maltrata sem se importar com a dor. 
 
Volto ao “gymnasium“, depois de algumas traquinagens juvenis sou conduzido pelo bedel à sala do sisudo Monsenhor, protegido pela batina e o crucifixo ostensivo ao peito. 
 
O que o senhor pensa da vida? 
 
Na realidade não sabia e passei a vida inteira agindo como se soubesse. 
 
Tudo deveria resumir-se ao arroz com feijão, bifes acebolados, broas de fubá, frutas no pé, cafezinhos fumegantes, colheres de pau, perfumes de manacás, bancos da praça, apitos de trens, matinês, biscoitos, vinhos isentos de etiquetas nas canecas de alumínio. 
 
As cadeiras e as prosas nas calçadas, convivências, sentimentos, segredos e confidências ao entardecer. 
 
A calma despida de computadores e celulares, apenas a velha Olivetti batucando seus doces ruídos das teclas buscando palavras, o som do aparelho negro pregado à parede com uma voz doce dizendo, telefonista, alô! 
 
As madrugadas se esvaem, as palavras cessam, adormeço sonhando páginas inacabadas. 
 
Convivo muitíssimo bem com a solidão, minha parceira e eterna companheira, “eu não tenho a quem dar satisfação”. 
 
Continuo em uma vigilância tal qual o guarda-noturno, no meu caso, guardando o nada, agarro-me a ela no anseio de outra noite sem estrelas protegido do mundo dos homens, ao lado, papéis, canetas, livros e tintos portugueses. 
 
Meu Neruda gasto, aberto sobre o lençol, não importa a página, apenas degustar. 
 
Quase sempre sou questionado ao citar os olhos verdes, como não posso revelar, refugio-me neles, fundamentais na inspiração em tecer minha literatura. 
 
* Agente cultural 

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