Na adolescência, enquanto alguns colegas treinavam violão para conquistar corações ou decoravam fórmulas de química no último minuto, eu desenvolvia um hábito peculiar: escrever paródias. Pegava músicas famosas, trocava a letra e, de quebra, ainda memorizava matérias escolares. Só mais tarde descobri que certos professores de cursinho já faziam a mesma coisa — ou seja, eu era um “pré-vestibulando” visionário sem saber.
Uma das minhas versões favoritas foi baseada em “O Progresso”, de Erasmo e Roberto Carlos. O verso final original dizia:“Não sou contra o progresso / Mas apelo pro bom-senso / Um erro não conserta o outro / Isso é o que eu penso.”
Na minha versão, virou “O Congresso”:“Não sou contra o Congresso / Mas apelo pro bom-senso / Primeiro tem que vir o povo / Isso é o que eu penso.”
Eu ainda não conhecia ciência política a fundo, mas já tinha noção de que, mesmo nos tempos cinzentos da ditadura, a prioridade dos mandatários dificilmente era o povo.
Pois bem: décadas se passaram e, nesta semana, o país assistiu, boquiaberto (ou tentou assistir já que a sessão terminou na madrugada), à votação da chamada PEC da Blindagem. Segundo diversos juristas, trata-se de uma aberração inconstitucional. Vale lembrar que uma Proposta de Emenda Constitucional é um instrumento nobre da democracia, reservado a situações de altíssimo interesse nacional — não para proteger parlamentares acuados por suas próprias sombras.
No malabarismo linguístico digno de acrobata de circo, alguns deputados tentaram convencer a população de que estavam apenas “se defendendo do STF”. E aí mora a manipulação: grande parte das pessoas desconhece que os parlamentares já contam com um pacote de prerrogativas robusto. Entre elas: não serem processados por suas opiniões, palavras ou votos; serem julgados somente pelo Supremo Tribunal Federal; não serem presos (salvo flagrante de crime inafiançável); e não terem a obrigação de testemunhar sobre informações ligadas ao mandato. Tudo isso foi colocado na Constituição de 1988 justamente para evitar que se repetisse a supressão de direitos da ditadura e garantir independência ao Legislativo.
O problema é que, em nenhum momento, o legislador constituinte imaginou criar uma casta de intocáveis do crime. E é aí que o sarcasmo da história dói. Os mesmos parlamentares que hoje brandem discursos inflamados contra os cidadãos comuns, defendendo a truculência policial, o endurecimento das penas e até o corte de itens básicos em presídios — como papel higiênico e absorvente — são os que, quando flagrados em delitos, recorrem à imunidade, a atestados médicos milagrosos e a prisões especiais. Agora, para coroar o triste espetáculo, votam um texto que simplesmente lhes concede blindagem contra investigação, prisão e processo. E, como se não bastasse, estendem o foro privilegiado até para presidentes de partidos — gente que sequer foi eleita pelo voto popular. Uma cortesia (com voto secreto) que, segundo analistas, tem muito a ver com o medo de investigações que rondam relações com o crime organizado e o destino nada transparente de emendas parlamentares.
Enquanto correm para blindar seus interesses, uma fila de pautas que mexem diretamente com a vida dos brasileiros segue estacionada. Estão lá, esperando boa vontade política, a PEC da Segurança Pública, a reforma administrativa, a Medida Provisória da taxação de aplicações financeiras, o projeto de isenção do imposto de renda até cinco mil reais e até a proposta de redução linear dos incentivos fiscais. Em resumo: quando o assunto é proteger privilégios, a pauta anda em velocidade olímpica; quando envolve o povo, entra no ritmo de tartaruga sonolenta.
Enquanto isso, o planeta queima em emergências climáticas, guerras se multiplicam, a polarização política nos divide — e o velho verso da canção volta a soar atual. Quase sexagenário, lembro do garoto que lia santinhos de campanha, acompanhava “A Voz do Brasil”, assistia com curiosidade ao horário político, aos comícios e aos debates eleitorais e, apesar de tudo, acreditava em um mundo melhor. Hoje, continuo entoando a paródia que criei:“Não sou contra o Congresso / Mas apelo pro bom-senso / Primeiro tem que vir o povo / Isso é o que eu penso.”

