Tribuna Ribeirão
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Nas trevas há claridade

Edwaldo Arantes

*
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A noite é a minha realidade, tenho por ela muito mais do que paixão, cumplicidade, parceria e sintonia, uma profunda gratidão. 

Fiel companheira ao lado do tinto seco português, livros, papéis e canetas, utensílios que acalentam, protegem e isentam de discórdias nas discussões comigo, nunca tenho razão. 

Ela nos traz um conjunto de inquietações, sabedorias e quimeras dos tempos vividos e que ainda estão por viver.

Não são trevas ou terrores que quando menino puxava o cobertor sobre a cabeça, tremendo, escondendo o desconhecido rezando para clarear.

Com ela, cheiros ímpares, ainda sinto o aroma do Manacá plantado rente a janela do meu quarto na casa do tio Lalado.

A quietude de seus ruídos, o ganido de um cão errante na madrugada, os gatos se amando em gritos intermináveis confundindo com o choro de bebês e as alcovas dos cabarés.

A geladeira ruge, o assoalho estala em suas tábuas decrépitas suplicando e soltando alaridos ininteligíveis, sussurrando pelo tempo que passou como o ancião em sua cadeira de balanço, mirando o nada, a verdadeira definição de “estorvo”, imperceptível a todos.

Diante do pedido suplicante insisto que não venha a claridade, que ela possa seguir acompanhando-me. 

O desespero surge, temores iniciam-se quando os ponteiros implacáveis registram 5h, uma aflição invade o corpo, suores untam minhas mãos indicando a alvorada. 

Aos poucos começo a ouvir a realidade de mais um dia, o vizinho e a tosse, a chaleira, cadeiras arrastando compondo estranhas sinfonias, copos, talheres e vassouras.

Crianças se ajeitam buscando o saber ou somente a merenda. 

O guarda noturno soa o último silvo, impossível atrasar o relógio para que a noite perpetue, não existe como esconder a cabeça embaixo dos lençóis, penso nos homens, relatórios, gravatas, sirenes, relógios e maledicências.

Vislumbro os primeiros raios invadirem o vidro quebrado improvisado em fita crepe, com a luz surge dúvida e o medo do dia. 

Enfrentar o semáforo, motores, calendários, buzinas, notícias, aulas, suores e jalecos. 

Tudo desprovido de novidades, apenas o cotidiano misturado ao sentimento de já ter passado por tudo, como rever o velho filme, infelizmente, em preto e branco.

Cansa-me dizer:

Bom dia! Como vai? Tal qual alegrias natalinas isentas de lógicas. 

Irritam-me perguntas inócuas desprovidas de quaisquer sentidos de quem mal conheço, sinto falta dos colóquios, conselhos, confidências, beijos e intimidades, mas permaneço polido tentando seguir meus passos longe de ser pedante.

Johann Wolfgang von Goethe em seu leito de morte, suplicou: “Luz! Luz! Quero Luz!”. 

Após uma vida de reflexões e buscas não expressou a luminosidade, apenas mais conhecimento e clareza.

Não sou apto ao suplício, peço que o dia acabe e surja aos poucos o resplandecer das trevas acompanhadas da solidão na luta travada e contínua do ser com ele mesmo, sem nocaute.

Goethe tinha razão ao pedir luz, nunca foi o dia e, muito menos a lamparina, apenas o claro do conhecimento. “Só sei que nada sei”, “Platão, sobre uma narrativa de Sócrates”.

 Penso, “Fiat Lux”. Opto, “Facere Tenebrae”.

Não careço em desejar boa noite ou algum descrente “durma com Deus”, palavras ao vento, falar por falar.

Somos como “Bodas de Diamante”, ela com seus motivos, ruídos e silêncios, eu com meus devaneios, tintos e tintas, o aconchego de dois amigos que dispensam palavras ou gestos para uma simples ou complexa comunicação, na mesa bebendo, olhos nos olhos, a presença iminente do entendimento.

Caminho ao seu lado sonhando esmeraldas, sorrisos, cheiros e mãos, nunca sinto falta de nada, estou protegido, apenas os “olhos verdes” teimam em surgir. 

A noite deveria ser como a saudade, nunca ceder, seu único erro é não permanecer, escondendo-se da aurora, deixando a angústia da expectativa e a dúvida da volta.

“Noite morta, junto ao poste de iluminação, os sapos engolem mosquitos.

Ninguém passa na estrada, nem um bêbado, no entanto há seguramente por ela uma procissão de sombras. Sombras de todos que passaram e os que já morreram”

 “O córrego chora. A voz da noite”…

“Não desta noite, mas de outra maior”. Manuel Bandeira.

* Agente cultural

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