Rodrigo Gasparini Franco *
A promulgação da Lei nº 15.240, de 28 de outubro de 2025, marca um avanço significativo no reconhecimento do afeto como valor jurídico, ao estabelecer de forma expressa que o abandono afetivo constitui ilícito civil, sujeito à compensação por dano moral.
A norma consolida uma evolução já em curso nos tribunais brasileiros, que há anos aplicam as regras de responsabilidade civil às relações familiares, entendendo que a omissão injustificada no dever de cuidado e convivência parental viola direitos fundamentais de crianças e adolescentes, produz sofrimento emocional e pode ensejar indenização.
Com a nova lei, o dever de cuidar deixa de ser apenas um imperativo ético e ganha natureza jurídica definida, dando maior segurança e previsibilidade àqueles que buscam reparação pela negligência afetiva.
O abandono afetivo é caracterizado pela ausência voluntária e prolongada de presença, atenção e proteção por parte dos pais, mesmo havendo condições para exercer a parentalidade. Não se trata de obrigar ninguém a amar, pois o amor não é exigível, mas de reconhecer que a negligência quanto ao cuidado, à escuta e à convivência causa danos reais ao desenvolvimento psíquico e emocional dos filhos.
A lei reforça a ideia de que amar é faculdade, mas cuidar é uma obrigação civil. A violação desse dever acarreta responsabilidade, conforme já reconhecido em precedentes do Superior Tribunal de Justiça, como o REsp 1.887.697/RJ, relatado pela ministra Nancy Andrighi, que confirmou a condenação de um pai ao pagamento de R$ 30 mil por abandono afetivo, diante de provas de traumas psicológicos resultantes da omissão paterna.
O entendimento do STJ é categórico: alimentos e poder familiar tratam de deveres distintos e não excluem a reparação moral por descumprimento do dever de cuidado. A consolidação desse entendimento na legislação traz implicações amplas. Em primeiro lugar, reforça os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e do melhor interesse da criança, previstos no artigo 227 da Constituição Federal, reconhecendo o cuidado como valor jurídico objetivo.
Em segundo, afasta definitivamente o argumento de que o direito de família estaria imune à responsabilidade civil, promovendo uma leitura moderna e humanizada do direito privado. A lei não fixa tabelas de indenização, respeitando o arbítrio do juiz, que deve considerar a duração do abandono, a gravidade dos danos psíquicos e a situação econômica das partes, sempre com equilíbrio entre a função compensatória e a natureza pedagógica da sanção. A jurisprudência dos Tribunais de Justiça já vinha consolidando precedentes importantes.
O TJ de Mato Grosso, por exemplo, manteve decisão que condenou um pai que abandonou a filha, portadora de deficiência mental, reconhecendo que o pagamento de pensão alimentícia não supre o dever de cuidado. O TJ do Distrito Federal adotou a tese de que o dano moral pode ser considerado in re ipsa, ou seja, presumido em situações de abandono prolongado, sem necessidade de prova específica do sofrimento, e reforçou a ideia de que “amar é possibilidade, mas cuidar é obrigação”.
O TJ de Rondônia, por sua vez, destacou que, embora o amor seja um sentimento livre, o dever de atenção, respeito e convivência é imposto pela lei e sua violação deve ser sancionada. Na prática, a Lei nº 15.240/2025 não cria um novo tipo de dano, mas explicita sua natureza jurídica e amplia o alcance das medidas reparatórias. A prova do abandono afetivo continua exigindo cautela: laudos psicológicos, registros escolares, histórico de visitas e depoimentos podem compor o conjunto probatório.
Contudo, a lei e a jurisprudência convergem no entendimento de que, diante de omissões graves e prolongadas, o dano é presumível e o nexo causal pode ser reconhecido de forma direta. A finalidade principal não é “comprar” o amor perdido, mas oferecer compensação simbólica e promover conscientização social.
A ausência de cuidado, quando dolosa ou culposa, não é apenas um drama pessoal, mas também uma ofensa a valores coletivos, pois compromete a formação emocional de cidadãos e perpetua ciclos de negligência. Ao transformar o abandono afetivo em ilícito civil, o legislador reafirma que o vínculo familiar não se resume ao sustento financeiro, mas se constrói com presença, respeito e responsabilidade.
A nova lei representa, assim, a maturidade de um Estado que reconhece que o afeto, embora não possa ser imposto, tem consequências jurídicas quando a sua ausência revela descaso. Mais do que reparar vítimas, a norma busca educar: sinaliza que cuidar de um filho não é ato de generosidade, e sim cumprimento de um dever jurídico essencial à dignidade humana e à própria ideia de justiça.
* Advogado e consultor empresarial de Ribeirão Preto, mestre em Direito Internacional e Europeu pela Erasmus Universiteit (Holanda) e especialista em Direito Asiático pela Universidade Jiao Tong (Xangai)

