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O futuro que já aconteceu

Rodrigo Gasparini Franco *

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Pouca gente se dá conta, mas grande parte da evolução tecnológica que usamos hoje foi antecipada há décadas, em laboratórios e demos experimentais que pareciam quase ficção científica. Em 1968, por exemplo, o engenheiro Douglas Engelbart realizou, em São Francisco, uma apresentação que entrou para a história com o apelido de “The Mother of All Demos”.

Em pouco mais de uma hora e meia, ele mostrou, ao vivo, praticamente o futuro da computação interativa, muito antes de computadores pessoais, laptops e smartphones existirem.

Naquele palco, Engelbart apresentou um dispositivo estranho, de madeira, com dois botões: o mouse, então totalmente novo.

Ao lado dele, uma interface gráfica rudimentar exibida em um grande monitor permitia abrir janelas, apontar e clicar, manipular texto diretamente na tela. Em vez de lidar apenas com linhas de comando enigmáticas, o usuário passava a “conversar” com o computador de forma visual, aproximando a máquina do cotidiano de pessoas não especialistas.

Como se isso não bastasse, Engelbart também demonstrou edição colaborativa de texto, algo que hoje associamos naturalmente ao Google Docs. Dois usuários podiam, em locais diferentes, editar o mesmo documento em tempo quase real. Mostrou ainda o conceito de hypertext, com links entre trechos e documentos – uma ideia que décadas depois se tornaria fundamento da World Wide Web.

Na mesma sessão, apresentou videoconferência básica, com imagem e áudio entre pontos distintos, e compartilhamento de tela, permitindo que uma pessoa acompanhasse à distância o que a outra fazia em seu terminal.

Tudo isso em 1968, quando a maioria dos computadores ainda dependia de cartões perfurados, terminais de texto e eram vistos principalmente como máquinas de cálculo, não como ferramentas para o trabalho intelectual coletivo. Não por acaso, a apresentação ficou conhecida como “The Mother of All Demos”: uma demonstração-mãe, que antecipou e inspirou boa parte do que viria a ser a computação pessoal e, depois, a própria internet.

Engelbart chegou a demonstrar seu sistema conectado entre a UCLA e o SRI, utilizando a ARPANET, antecessora direta da internet. A rede que nascia para ligar poucos laboratórios de pesquisa, focada em comunicação entre instituições militares e acadêmicas, acabaria se transformando na espinha dorsal da sociedade conectada.

A ponte entre ARPANET, a computação interativa de Engelbart e a popularização dos PCs traça uma linha direta até o que fazemos hoje: trabalhar em documentos compartilhados, fazer videochamadas, acessar links, controlar telas remotamente – recursos tão banais que quase esquecemos o quanto foram visionários.

Nos anos 1980, outro passo importante rumo a interações mais naturais com máquinas veio do MIT. Em 1980, Richard Bolt apresentou a famosa demonstração “Put That There”, um sistema multimodal que permitia controlar o computador combinando voz e gestos.

O usuário podia apontar com a mão para a tela e dizer comandos em linguagem natural, como “coloque isso ali”, e o sistema interpretava tanto a fala quanto o contexto espacial do gesto. A ideia de unir linguagem natural e espaço físico antecipava algo que hoje praticamos sem pensar com assistentes como Alexa, Siri e Google Assistant, integrados a televisões, lâmpadas e outros dispositivos de uma casa conectada. A internet das coisas (IoT), que torna a casa “inteligente”, se apoia justamente nesse tipo de visão: comandos simples, interpretação de contexto e resposta fluida das máquinas.

Mais recentemente, um dos conceitos mais comentados é o de agentes de IA, programas que parecem “autônomos” e coordenam diferentes tarefas a partir de instruções em linguagem natural. Para muitos, trata-se de uma novidade absoluta.

No entanto, a arquitetura de agentes cooperativos já vinha sendo explorada desde os anos 1990, com propostas como a Open Agent Architecture (OAA), desenvolvida por David Martin e colegas. A ideia era permitir que vários agentes de software trabalhassem juntos para resolver tarefas complexas.

O usuário poderia emitir um comando como “marque uma reunião com fulano amanhã à tarde”; um agente interpretaria o pedido em linguagem natural, outro consultaria agendas, outro prepararia e enviaria os e-mails necessários, enquanto um “facilitador” coordenaria todo o fluxo entre esses módulos. O que hoje chamamos de “dar um prompt” para que um conjunto de serviços aja de forma integrada já estava, ao menos em conceito, no horizonte há mais de três décadas.

Quando olhamos em retrospecto, percebemos que muitos recursos que consideramos recentes foram, na verdade, pensados e desenvolvidos muitos anos atrás, em protótipos e pesquisas de ponta que pavimentaram o caminho para o presente. Para quem gosta de acompanhar o desenvolvimento tecnológico e entender melhor a inteligência artificial e seus impactos na vida cotidiana, vale a leitura do livro “L’intelligence artificielle n’existe pas”, do cientista Luc Julia (ainda não lançado no Brasil).

E, para aqueles que temem que a IA possa substituir os humanos, o Dr. Luc é categórico: a inteligência artificial não pode suplantar a inteligência do homem, nem a nossa capacidade de criar e inovar.

* Advogado e consultor empresarial de Ribeirão Preto, mestre em Direito Internacional e Europeu pela Erasmus Universiteit (Holanda) e especialista em Direito Asiático pela Universidade Jiao Tong (Xangai)

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