Antonio Carlos Augusto Gama *
[email protected]
“No princípio era a Palavra e a Palavra estava em Deus; e Deus era a Palavra. Todas as coisas foram através dela feitas e sem ela nada do que foi feito poderia ser feito. Nela estava a vida e a vida era a luz dos homens.” (Jo 1:1)
É conhecida a história, contada pelo próprio Millôr Fernandes, de que seu nome seria “Milton”(seu irmão chamava-se Hamilton), mas ao consultar seu registro de nascimento percebeu quenagrafia cursiva do escrivão as letras “t”, “o” e “n” assemelhavam-se, respectivamente,a um “l”, um “o”, com acento, e um “r”,o que acabou por lhe conferir um nome único, que marcou e transformou sua vida, pessoal e artística.
Eis aí um exemplo perfeito e acabado do poder das palavras, que dão sentido ao que somos e ao mundo em que vivemos, e são capazes até mesmo de criar ou alterar realidades.
O mesmo Millôr, que era um grande desenhista, ao ser confrontado com a famosa frase “uma imagem vale por mil palavras”, costumava redarguir, de modo irrespondível: “Diga isso sem palavras”.
Embora toda ciência deva ter uma linguagem própria, que a identifica e distingue como tal, o uso abusivo e desnecessário dos termos técnicos, fora do seu contexto acadêmico ou profissional é uma forma de demonstrar e exercer poder sobre os leigos, excluindo-os daquele mundo de suposta sapiência, encerrado em si mesmo, ao qual somente se poderá ingressar sabendo a senha mágica do abracadabra.
Jorge Larrosa Bondía, doutor em pedagogia pela Universidade de Barcelona, anota de modo lapidar: “Todo mundo sabe que Aristóteles definiu o homem como “zôon lógon échon”. A tradução desta expressão, porém, é muito mais “vivente dotado de palavra” do que “animal dotado de razão” ou “animal racional”. Se há uma tradução que realmente trai, no pior sentido da palavra, é justamente essa de traduzir “logos” por “ratio”. E a transformação de “zôon”, vivente, em animal. O homem é um vivente com palavra. E isto não significa que o homem tenha a palavra ou a linguagem como uma coisa, ou uma faculdade, ou uma ferramenta, mas que o homem é palavra, que o homem é enquanto palavra, que todo humano tem a ver com a palavra, se dá em palavra, está tecido de palavras, que o modo de viver próprio desse vivente, que é o homem, se dá na palavra e como palavra.”
A propósito, ainda, lembra Alberto Manguel que “Quando foram atacados por uma doença parecida com amnésia, em um dia de seus cem anos de solidão, os habitantes de Macondo perceberam que seu conhecimento do mundo estava desaparecendo rapidamente e que poderiam esquecer o que era uma vaca, uma árvore, uma casa. O antídoto, descobriram, estava nas palavras. A fim de lembrar o que o mundo significava para eles, fizeram rótulos e os penduraram em animais e objetos: “Isto é uma árvore”, “Isto é uma casa”, “Isto é uma vaca, e dela se obtém o leite, que, misturado com café, nos dá café com leite”. As palavras nos dizem o que nós, como sociedade, acreditamos que é o mundo”.
Embora seja controversa a origem da Cabala, sustentam místicos e ocultistas que o Livro da Criação (SEFER YETSIRAH) fundamentou as práticas cabalísticas com as noções de que a realidade estaria estruturada através das letras. Por essa concepção o mundo derivou de 32 elementos (os 10 primeiros números e as 22 letras do alfabeto hebraico), e o processo cósmico estaria embutido na progressiva descoberta do nome de Deus, inacessível à maioria dos mortais.
A força e a importância das palavras revelam-se, ainda, no fato de que os grandes acontecimentos históricos, quase todos, são marcados por frases (verdadeiras ou não) que teriam sido ditas pelos seus protagonistas. Desnecessário citar algumas delas aqui, até porque cada um terá suas preferidas.
Não menos notáveis e extraordinariamente significativas são as frases ou palavras que se tornaram verdadeiros ícones, sem que nunca realmente tenham sido ditas, ou cuja autenticidade é duvidosa.
O cultuado filme Casablanca, dirigido por Michael Curtiz e estrelado por Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, que eternizou a canção As Time Goes By, é frequentemente lembrado pela frase talvez mais lendária do cinema, “Play it again, Sam!”, que nunca foi dita, seja por Bergman, seja por Bogart. Ilsa (Bergman) fala ao pianista: “Play it, Sam. Play As Time Goes By”. E depois, quando Rick (Bogart) manda que Sam toque também para ele a mesma música, diz: “You played it for her, you can play it for me.”
Tudo isso me faz recordar outra frase cinematográfica famosa, do final de um dos maiores westerns de todos os tempos, O Homem Que Matou o Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance), do grande John Ford, dita pelo jornalista Scott ao senador Stoddard, interpretado por James Stewart, justificando a razão de desistir de publicar os verdadeiros fatos que acabavam de lhe ser revelados pelo senador: “Aqui é o Oeste, senhor. Quando a lenda vira um fato, publique-se a lenda”.
* Promotor de Justiça, aposentado, advogado, professor de Direito e escritor

