Tribuna Ribeirão
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Os memoriosos

Antonio Carlos Augusto Gama

*
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Jorge Luis Borges, num de seus contos mais memoráveis (“Funes, o Memorioso”, in “Ficções”), conta de um deles. Talvez o maior de todos. Assim descreve o seu dom (ou seu tormento):

“Nós, de uma olhadela, percebemos três taças em uma mesa; Funes, todos os rebentos e cachos e frutos que compreende uma parreira. Sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer do trinta de abril de mil oitocentos e oitenta e dois e podia compará-las na lembrança aos veios de um livro encadernado em couro que vira somente uma vez e às linhas da espuma que um remo levantou no rio Negro na véspera da batalha do Quebracho.

Essas lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada às sensações musculares, térmicas, etc. Podia reconstruir todos os sonhos, todos os entressonhos. Duas ou três vezes havia reconstruído um dia inteiro; nunca havia duvidado, cada reconstrução, porém, já tinha requerido um dia inteiro. Disse-me; “Mais recordações tenho eu sozinho que as tiveram todos os homens desde que o mundo é mundo”. 

O próprio Borges era um memorioso.

Faço parte dessa família. 

Lembram-me coisas que me passaram, ou não. Mas se me lembram, me passaram, e me passarão.

A bem de ver, o que temos é só o passado. O presente, este instante fugaz, acaba de passar. O futuro, se vier, será o presente que passa.

Morremos quando nos esquecemos, ou nos esquecem.

É de um memorioso a angústia derradeira de Roy Batty (N6MAA10816, Nexus-6, Masculino, Nível físico A, Nível mental A, Data de fabricação 1/08/16) o mais poderoso dos androides de BladeRunner (magnificamente interpretado por Rutger Hauer):

“Eu vi coisas que vocês, humanos, nem iriam acreditar. Naves de ataque pegando fogo na constelação de Órion. Vi Raios-C resplandecendo no escuro perto do Portão de Tannhäuser.

Todos esses momentos ficarão perdidos no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer.’

É a vida que se vai, em vão, quando as lembranças se perdem, como lágrimas na chuva:

No silêncio da sala
os pingos da torneira que vaza
são uma voz que não cala
inundando o vazio da casa.

Clepsidra sonante

é a própria vida que se esvai
sem que se dê conta
a cada gota que desponta

oscila, resiste, insiste
por fim cai tremifusa

como uma lágrima na chuva…

* Promotor de Justiça, aposentado, advogado, professor de Direito e escritor

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