Tribuna Ribeirão
Artigos

Ouro do Brasil, lucro do Canadá

As exportações brasileiras para o Canadá atingiram em 2025 um marco histórico, e o protagonista é um velho conhecido: o ouro. Entre janeiro e agosto, o metal precioso respondeu por 42,4% de tudo o que o Brasil enviou ao parceiro norte-americano, somando US$ 1,9 bilhão, um salto de 73,2% ante o mesmo período de 2024.

Nunca o ouro teve tanto peso na balança entre os dois países, consolidando-se como principal item da pauta exportadora brasileira em direção a Ottawa.

O dado, contudo, vai além da estatística. Ele revela a engrenagem desigual de uma relação em que o Brasil se limita à função de fornecedor de minério bruto, enquanto o Canadá se beneficia das etapas de refino, negociação e financeirização, capturando a parte de maior valor agregado.

É um modelo que repete, no século XXI, uma lógica antiga: a periferia enfrenta os danos socioambientais da extração, enquanto o centro concentra arrecadação e empregos de alta qualificação.

Do ponto de vista tributário, a extração no Brasil gera pouco retorno. O ouro classificado como ativo financeiro não recolhe IPI.

Como exportação, também fica livre de ICMS, PIS e Cofins. Restam somente os royalties da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), fixados em 1,5% sobre a receita bruta. Essa é a única cobrança garantida, que no acumulado do ano equivale a pouco mais de US$ 28 milhões.

É uma soma irrisória diante da escala do negócio, sobretudo considerando os custos ambientais e sociais da mineração.

Em tese, haveria ainda arrecadação pelo Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e pela Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL). Mas o desenho jurídico-tributário permite ampla margem de planejamento.

Como muitas mineradoras atuam por meio de subsidiárias de grupos estrangeiros, é comum que despesas sejam registradas como serviços prestados por empresas do mesmo grupo no exterior, reduzindo artificialmente o lucro tributável. Juros pagos a financiamentos da matriz também entram nessa lógica. Além disso, existe a depreciação acelerada de equipamentos e incentivos regionais, como a redução de até 75% no IRPJ para companhias da Amazônia autorizadas pela Sudam.

Na prática, a maior parte da arrecadação potencial escorre para fora antes de virar recurso público.

Enquanto isso, no Canadá, o ouro brasileiro chega com valor cheio pelo preço internacional de mercado. O refino em Toronto gera taxas cobradas sobre a carga, mesmo que pequenas em termos percentuais, mas significativas em valores absolutos.

Mais adiante, a negociação em bolsas e no sistema financeiro multiplica o valor agregado: o ouro é convertido em ativo financeiro, serve de lastro, vira derivativo, integra fundos. É justamente sobre esses serviços, sofisticados e de alta margem, que incidem os tributos federais e provinciais canadenses. Todos permanecem no país, fortalecendo a base fiscal e consolidando o ecossistema local.

A contradição é evidente.

O Brasil arca com os custos ambientais: desmatamento, rios contaminados por mercúrio, comunidades deslocadas, conflitos em terras indígenas, barragens de rejeito. Suporta também os efeitos sociais: cidades inchadas, ciclos de riqueza efêmera e abandono econômico. Em troca, recolhe apenas uma fração pequena do faturamento, com o 1,5% da CFEM garantido e uma parte incerta do lucro efetivo das mineradoras, sujeita a mecanismos de planejamento tributário.

O saldo fiscal é insuficiente para compensar os danos.

Em Toronto, fora do alcance dos impactos ambientais e sociais, o ouro desembarca como matéria-prima para geração de negócios e empregos. A cidade concentra algumas das maiores refinarias do planeta e um mercado de capitais que lidera a listagem de companhias mineradoras.

Com cada onça de ouro brasileiro, reforça-se a condição do Canadá como um dos principais hubs globais de mineração e metais preciosos. Refinadores recebem tarifas, tradings embolsam margens, governos recolhem impostos sobre intermediações financeiras. O país ganha prestígio e solidez ao ocupar posição central em uma cadeia de valor global.

Quando os números oficiais revelam que quase metade do que o Brasil enviou ao Canadá neste ano foi composto por ouro, o registro vai além de um triunfo comercial. Ele expõe de forma nítida a diferença entre extrair recursos naturais e controlar a etapa de agregação financeira. O Brasil, como de hábito, assume os riscos e os danos, mas não internaliza de forma significativa os ganhos. O Canadá, ao contrário, se beneficia das etapas mais sofisticadas, onde os valores se multiplicam.

No fim, a conta é clara: ao Brasil, resta o peso social e ambiental da mineração, garantido por 1,5% de CFEM e uma fatia volátil do lucro que sobrevive às estratégias contábeis. Ao Canadá, ficam o refino, a negociação financeira, os impostos sobre serviços de alto valor agregado. Com isso, o Canadá reforça ano após ano sua posição como um dos principais hubs globais do ouro.

* Advogado e consultor empresarial de Ribeirão Preto, mestre em Direito Internacional e Europeu pela Erasmus Universiteit (Holanda) e especialista em Direito Asiático pela Universidade Jiao Tong (Xangai)

 

Postagens relacionadas

A Literatura Paraguaia na Contemporaneidade

William Teodoro

Fale agora ou cale-se para sempre!

Redação 1

O primeiro olhar

William Teodoro

Utilizamos cookies para melhorar a sua experiência no site. Ao continuar navegando, você concorda com a nossa Política de Privacidade. Aceitar Política de Privacidade

Social Media Auto Publish Powered By : XYZScripts.com