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18 de abril de 2024 | 12:05
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Cultura

Fellini criou um mundo falso para refletir sobre sentimentos reais

Por Luiz Carlos Merten

Federico Fellini tinha 32 anos quando fez seu primeiro longa solo, em 1952. Dois anos antes, codirigira Mulheres e Luzes com Alberto Lattuada, mas Abismo de Um Sonho é o verdadeiro começo de tudo. Um casal, Leopoldo Trieste e Brunella Bovo. Viajam em lua de mel a Roma, para ver o papa, mas isso é o que ele pensa. Ela sonha conhecer o sheik branco de sua fotonovela favorita. Brunella some em Roma e, vagando na noite, o marido encontra Giulietta Masina como uma prostituta gentil, que lhe devolve a esperança e a fé. As Noites de Cabíria já estava em Abismo de Um Sonho, mas isso só deu para descobrir depois.

Completa-se nesta segunda-feira, 20, o centenário de nascimento de Federico Fellini. Nasceu em Rimini, cidade à beira do mar Adriático. Tornou-se um artista tão conhecido que seu nome deu origem a um adjetivo – felliniano – devidamente catalogado no Aurélio. Designa alguma coisa delirante, imaginativa. Estudou jornalismo em Florença e virou profissional em Roma, na revista de humor Marco Aurélio. Escreveu roteiros de fotonovelas – chamadas de fumetti -, fez rádio-teatro. Chegou ao cinema e escreveu roteiros um mestre neorrealista, Roberto Rossellini.

Embora com o pé na realidade, Fellini preferiu sonhar. Forjou uma biografia. Um ano depois de Abismo de Um Sonho, surgiu Os Boas Vidas, com Franco Interlenghi como um jovem que, como ele, foge à vida sufocante de província. O trânsfuga virou o jornalista Marcello de A Doce Vida e o cineasta Guido Anselmo de Oito e Meio, ambos interpretados por Marcello Mastroianni, o astro que foi alter ego de Fellini. Entre Os Boas Vidas e A Doce Vida, surgiram A Estrada da Vida e As Noites de Cabíria, o primeiro e o segundo Oscars de filme internacional, mais A Trapaça.

Foram quatro Oscars – três de melhor filme estrangeiro, La Strada, As Noites de Cabíria, Amarcord, mais um de carreira. Além de Mastroianni, teve uma parceria longa com o compositor Nino Rota. Foi casado 50 anos com Giulietta Masina, a quem ofereceu papéis inesquecíveis. Embora egresso do neorrealismo, quando começou a dirigir o movimento já esgotara seu ciclo histórico. Não havia como nem por que ficar preso àquele modelo. Fellini e Michelangelo Antonioni ingressaram na vertente chamada de realismo interior. Antonioni fez filmes sobre a alienação da burguesia, criou a trilogia da solidão e da incomunicabilidade. Fellini nunca teve aquele temperamento.

Menino, jurava que havia tentado fugir de Rimini seguindo um circo. O barroco e o circo sempre foram seu território, e por mais que exista angústia existencial em La Dolce Vita e Otto e Mezzo ela é embalada em imagens exuberantes, o tom é feérico. A estátua do Cristo sobrevoa Roma, a milionária e o jornalista fazem sexo na cama da prostituta, a estrela de Hollywood usa um vestido estilizado de padre e depois se banha na Fontana di Trevi. Fellini chegou a pensar em chamar A Doce Vida de Babilônia 2000. A derrocada da civilização – no desfecho, a garota tenta se comunicar com Marcello na praia, mas ele não a ouve.

A Marcello sucede Guido, o cineasta em crise. Sufoca em seu carro, viaja ao próprio passado e ao mundo da imaginação. Guido, a mulher e a amante. Guido, menino, na praia e a prostituta volumosa. A rumba, Saraghina. Os críticos tendem a considerar o psicanalítico Oito e Meio a obra-prima de Fellini, o público prefere Amarcord. O acordeonista cego, o pavão que abre sua cauda, as ridículas paradas fascistas, a Gradisca – um desejo de mulher, todos aqueles garotos masturbando-se por ela -, o transatlântico Rex que passa na noite. Amarcord, no dialeto de Rimini, quer dizer ‘Eu me lembro’. Fellini autobiográfico, Fellini mentiroso. O mar é de plástico e, no rito fúnebre de E La Nave Va, ele mostra que o próprio navio é de mentira. Nem por isso a grande mentira de Fellini deixa de ser um instrumento para ele falar de sentimentos verdadeiros.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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