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29 de março de 2024 | 3:43
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‘João aos Pedaços’ retrata a complexa trajetória do escritor João Gilberto Noll

Por Paula Sperb, especial para o Estadão

Autor de uma literatura que privilegia a linguagem, João Gilberto Noll (1946-2017) é considerado um dos principais escritores brasileiros contemporâneos. Prestigiado pela crítica especializada, ele não alcançou, todavia, o sucesso de público que garantiria segurança financeira para executar seu ofício com tranquilidade.

Na sua biografia recém-lançada, João aos Pedaços (Diadorim, 2021), o jornalista gaúcho Flávio Ilha mostra os dias de penúria do autor natural de Porto Alegre, que chegou a consumir apenas caldo artificial por falta completa de dinheiro para alimentar-se. A obra aborda desde a infância, com a mãe opressora que queria que ele fosse padre, a admiração de escritores como o argentino César Aira e o paulistano Daniel Galera, até os últimos dias na capital gaúcha.

O biógrafo entrevistou amigos, familiares, ex-namorados e ex-namoradas para compor o mosaico dos pedaços de Noll, referidos no título da obra. Somando depoimentos e documentos, como cartas até então inéditas e rascunhos de textos, Ilha desenha a trajetória do romancista. O percurso não é narrado de modo linear, assim como a ficção do seu conterrâneo.

Autor de títulos como O Cego e a Dançarina (1980), Berkeley em Bellagio (2002) e O Quieto Animal da Esquina (1991), Noll é conhecido pela escrita obscena – escatológica até – que explora as vísceras da existência humana.

O trabalho de investigação sobre a vida do ficcionista revela partes do que seria seu novo romance. Em 2015, o autor se afastou da sua rotina em Porto Alegre para tentar concluir a nova obra. Noll chegou a passar um mês em Florianópolis, na pousada de uma das irmãs, para escrever o livro. O texto, entretanto, permaneceu inacabado. Partes dele estão na biografia que chega ao público, com a reprodução da primeira página, escrita à mão.

Noll usou caneta e caderno, já que havia perdido a senha para acessar o computador dado a ele pela então companheira, Magali Koepke. Ele conheceu Magali em 2013, em uma oficina literária ministrada por ele. O romance inacabado começa assim: “Abri a janela e vi um lençol branco balançando com a brisa da manhã. Era meu primeiro dia naquela pousada e não sabia muito bem o tempo que deveria ficar nela. Se fosse por mim não estaria ali. Aliás, nem em lugar nenhum. É que chega um momento em que as relações se repetem e você tem a ideia de habitar um remanso inaugural onde as coisas todas estão por fazer e você precisa apenas de uma energia grande para pôr as oportunidades em marcha, e, que, de fato, você as tem”.

A trama apresenta dois pares de irmãs gêmeas. O biógrafo associa as figuras à vida de Noll no período. “Isso porque a Magali é mãe de gêmeos e ele estava convivendo muito bem com os filhos. Ele estava muito bem, uma vida tranquila”, diz Ilha.

Os tempos de paz dos últimos anos de vida do escritor são atribuídos à estabilidade do novo relacionamento, indica a biografia. Era comum que Noll “brigasse e fizesse as pazes” sem motivos muito aparentes, relataram as pessoas próximas ao biografado.

Uma das dificuldades do jornalista ao escrever a biografia foi justamente localizar as tais pessoas próximas. “Ele era muito discreto nas relações pessoais. Nem a família muitas vezes sabia com quem ele andava”, explica Ilha. O biógrafo localizou um dos primeiros namorados de Noll, com quem ele manteve um relacionamento duradouro no Rio de Janeiro, na década de 1970. Agora casado com uma mulher e com filhos, o ex-namorado deu o depoimento sob a condição de anonimato.

“Eu era muito imaturo, mas amava a companhia do João, o seu temperamento melancólico. Era uma época de experiências e descobertas para mim, então foi um relacionamento que se desenrolou naturalmente. O João não tinha recursos, não tinha dinheiro para nada”, contou o namorado da época.

Noll não era apenas discreto, como muitas vezes “despistava” sobre seus relacionamentos. É o caso da sua relação com o também gaúcho Caio Fernando Abreu, por exemplo. “As relações com o Caio Fernando Abreu foram muito difíceis de estabelecer, tanto que não consegui cravar na biografia que eles tiveram um caso amoroso. Tudo indica que sim, mas não há provas. Então, me preocupei em mostrar indícios coletados bem evidentes, da vida deles em Porto Alegre”, diz Ilha sobre os dois escritores.

Com a saúde mental fragilizada, Noll foi submetido a questionáveis tratamentos, tanto na juventude como na vida adulta. Na juventude, chegou a ser internado em um sanatório com rotina severa. O tratamento conhecido como “choque insulínico” o deixava inconsciente.

A obra também revela relatórios de sua editora, mostrando números de vendas de livros. Nos meses seguintes à sua morte, A Fúria do Corpo vendeu 29 cópias. Os documentos mostram que Noll pouco recebia pelos livros, já que as vendas eram tímidas e a editora descontava os adiantamentos e direitos pagos pelas obras “Ele devia para as editoras, não conseguia recuperar os adiantamentos”, explica Ilha.

Após sua morte, entretanto, a recepção nos Estados Unidos de suas traduções ganhou força e sua literatura acaba sendo referenciada como “queer”, ou seja, fora da normatividade das identidades sexuais.

Com muitas fotografias do álbum de família, a biografia tem ainda uma foto feita por celular, o último registro de Noll vivo A foto de 26 de março – ele foi encontrado morto poucos dias depois – foi feita pela atendente do Café Chaves, do qual era assíduo. Os funcionários estranharam sua ausência nos dias anteriores e, quando o ilustre cliente retornou, a atendente quis registrar para enviar a um colega.

A biografia conta ainda com textos não publicados, enviados por carta em 1969 ao amigo Celso Marques. “Eles constam no livro mais como um registro histórico, do período de transição de Porto Alegre ao Rio de Janeiro, no final dos anos 1960 e começo dos anos 1970. Nunca deixaram de ser inéditos porque Noll não considerou como literatura dele. São experiências. Já é possível notar as quebras de sequência, ausência de personagem definido, fluxo de consciência, algumas coisas ele aproveitaria depois na literatura dele”, explica o biógrafo.

As cartas à família chamam mais atenção. Ele escrevia contando sobre os discos que ouvia, os livros que lia e escrevia. As cartas revelam algo importante que era a solidão. “Ele sofria com essa solidão, era desesperador”, diz Ilha. Um sentimento de solidão tão grande que era continental, como o título de seu último romance, de 2012.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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