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28 de março de 2024 | 11:39
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Cultura

Soul da Paz lança o primeiro álbum

“Um muçulmano, um gran­de amigo meu, estendeu a mão ao nosso irmão judeu. Nosso irmão judeu, que não sabe dizer não, sempre que pode ajuda o nosso irmão cristão. E quem é crente, aju­da o pai de santo, amigo da gente”, diz a letra do reggae “Um ajuda o outro”, com­posto pelo sacerdote hare krishna (hinduísmo) S.G. Mahesvara Caitanya Das – ou apenas Mahesh. Mais do que palavras, os versos simbolizam o que integran­tes da banda inter-religiosa Soul da Paz praticam: a con­vivência pacífica das dife­rentes crenças.

A banda, que acaba de lançar nas plataformas digi­tais o álbum “Soul da Paz”, com oito músicas, nasceu há sete anos, em São Paulo, por iniciativa de Mahesh. Desde 2006, ele participa e organiza eventos em defesa da liber­dade religiosa. Nesses encon­tros, além de palestras, era de praxe haver apresentações de música ou leitura de poemas – algo nem sempre interes­sante para todos.

“Às vezes, os umbandistas tocavam atabaques, os hare krishnas faziam seu som, ha­via corais. Isso desagradava a uma ala ou outra. Pensei que seria bom que cada um desses líderes participasse de uma banda, assim o público olharia de maneira igual para as apresentações, além de chamar atenção para o traba­lho”, conta.

Masheh já era amigo do rabino Gilberto Ventura e di­vidiu com ele a ideia. Depois, foi só convidar outros líderes. Assim, passaram a integrar o grupo os católicos André Herklotz e Paulo Miranda, o budista Ricardo Camilo, o bispo anglicano Dom Flávio Irala, o umbandista Pai Tor­res, o hare krishna Bhakta João Rafael, o pastor Eliel Leonardo, o espírita karde­cista Zen Leão, os metodis­tas Júlio D’Zambê e Débora D’Zambê e o espírita cristão Marcio Scialis.

“Vou muito a encontros inter-religiosos, mas não acredito em discursos. Mui­tos estão lá só para fazer propaganda. Em um deles, um líder evangélico me dis­se ‘você sabe que aqui só eu e você servimos a Deus’. Dis­cordo. Todos estão em busca do divino e a banda traz isso para a prática”, diz o rabino Ventura, vocalista e letrista.

Ele está à frente da Sina­goga Sem Fronteiras, no bair­ro do Pacaembu, que acolhe cristãos-novos que desejam retornar ao judaísmo e luta contra o antissemitismo. Pai Torres, umbandista há 15 anos, conta como recebeu a convocação para o grupo. “No começo, achei um pou­co assustador, inusitado”, diz o percussionista. O pastor Eliel Leonardo, da Assem­bleia de Deus de Guarulhos, aceitou o convite após um episódio de intolerância reli­giosa virar notícia.

“As músicas são autorais e representam o que a banda defende, que é o respeito ao próximo”

Ao sair de um culto de candomblé, no Rio de Janei­ro, uma menina de 11 anos foi agredida verbalmente por pessoas com Bíblias nas mãos, o que desagradou ao pastor. “Fui no primeiro en­saio e fiquei até hoje”, diz ele, um dos vocalistas. Para Eliel, que estudou em seminário neopentecostal e trabalhou com o ex-jogador Jorginho em uma célula da igreja na Alemanha, a banda é uma “santa provocação”, e partici­par dela faz com que se apri­more na própria crença.

Sem cerimônia
A banda, que já fez inú­meras apresentações antes de chegar ao estúdio, não tem caráter ecumênico ou de sincretismo religioso, como faz questão de frisar Mahesh. “Não fazemos qualquer tipo de cerimônia em conjunto. Res­peitamos quem é sincrético, mas penso que o mais difícil é conviver com o diferente. No sincretismo, você destrói as diferenças, torna homogêneo, e, assim, fica mais fácil. O in­teressante é conviver com o diferente”, diz.

“Não estamos juntando religiões. Estamos mostran­do que podemos ser ami­gos e unidos em busca da paz, da amizade e da justiça social”, completa o rabino Ventura. A ideia aparece na letra dos rocks “Somos todos iguais” e “Sementes da paz”, de Mahesh. O primeiro ver­sa sobre uma família em que cada um segue uma religião e todos convivem em paz; o segundo pede que cada um faça sua parte para um mun­do melhor.

Na Soul da Paz também há contestação. O rap “É Ki Pá”, composto por Ventura, nasceu inspirado em um epi­sódio de 2010, em que uma moradora de Higienópolis, bairro nobre de São Paulo, declarou que a nova estação de metrô na região atrairia “gente diferenciada” para lá. A culpa caiu para os judeus, tradicionais moradores do bairro, acusados de serem elitistas. “Eu sou anárqui­co, só gosto de rap. O pro­feta Jeremias era rapper. A maioria dos judeus não é elitista”, reforça.

Mas como se sentem os religiosos ao cantarem músi­cas que, aos olhos da religião, podem ser profanas? “Não te­mos restrições musicais. Cos­tumo dizer que a umbanda é um tiquinho de cada coisa”, diz Pai Torres. “As músicas são autorais e representam o que a banda defende, que é o respeito ao próximo. Assim como Jesus conversava com pessoas que não o aceitavam, eu também converso. Vão pensar que eu estou com o demônio? Sim, mas não ligo”, diz o pastor Eliel.

Com a ideia de produzir um álbum e com o processo de gravação – no fim de 2019 – já em andamento, os inte­grantes da Soul da Paz senti­ram a necessidade de que um produtor gerenciasse os tra­balhos. Foi então que, em um passeio pelo Shopping Higie­nópolis, o rabino Ventura viu o músico Kiko Zambianchi (autor de sucessos como “Eu te amo você” e “Primeiros er­ros”). Não pensou duas vezes: mesmo sem conhecê-lo, foi convidá-lo para participar do projeto.

“Pensei: que coisa louca! Vários religiosos, cada um com uma crença, fazendo música juntos. Resolvi acei­tar. O rabino é uma figura agregadora, inteligente. Isso me motivou também”, diz Zambianchi, que se lembrou quando, aos 15 anos, teve síndrome do pânico. Sem um diagnóstico preciso, ele se apegou à espiritualidade. “Fui à igreja, à umbanda, ao hare krishna. Tudo me ajudou. E estar com eles nesse projeto era uma oportunidade de re­lembrar essa minha busca.”

Zambianchi afirma que precisou ser exigente quan­do assumiu a produção do álbum. “Eu disse, brincando: ‘sei que vocês são chefes em suas religiões, mas, aqui, não tocam nada e a religião não vai ajudar’”, conta. No mais, fez alguns ajustes, simplificou processos e ensaiou bastante. “Foi todo mundo melhoran­do. Antes, era um apanhado de música. Hoje, eles têm um som próprio”, elogia.

Ele mesmo tocou em al­gumas faixas, além de chamar o amigo Bruno Gouveia, do Biquini Cavadão, para cantar na faixa “The band of peace and soul”. Do ambiente do estúdio, o músico só guarda boas recordações. “Sou teste­munha que eles se entendem de verdade. Os papos eram maravilhosos. Tirei muitas dúvidas sobre religião”.

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