Por Adalberto Luque
Mais um Dia da Consciência Negra é celebrado no Brasil. Mais como feriado do que por motivos a serem comemorados. Por mais que haja campanhas de conscientização, o racismo estrutural segue forte e, ao invés de agregar seres humanos, a data segue mais como um ‘feriadão’.
A dimensão racial da violência no Brasil continua evidente nos dados oficiais mais recentes. Entre 2023 e 2024, levantamentos de organismos públicos e institutos especializados revelam um cenário marcado pela desproporção: pessoas negras seguem como as principais vítimas de homicídios, mortes decorrentes de intervenção policial, agressões sexuais e até de letalidade contra agentes de segurança.
As estatísticas, produzidas por fontes como o Atlas da Violência, a Rede de Observatórios da Segurança, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública e pesquisas do DataSenado, demonstram que a desigualdade racial permanece em alta na segurança pública.
Letalidade policial
Segundo a Rede de Observatórios da Segurança, em relatório divulgado em 2024, policiais mataram 4.025 pessoas em nove estados brasileiros ao longo de 2023. Entre os casos em que havia registro de raça ou cor — 3.169 — ao menos 2.782 vítimas eram negras, o equivalente a 87,8%. O levantamento reúne dados de Amazonas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo.
A mesma Rede de Observatórios de Segurança apontou que, nesses estados, um negro foi morto por intervenção policial, em média, a cada quatro horas no ano de 2023. O relatório destaca que, em todos os estados monitorados, a proporção de vítimas negras excede a participação desse grupo na composição populacional, reforçando a disparidade já identificada em anos anteriores.

De acordo com o Censo Demográfico de 2022, pessoas pardas representam 45,3% da população brasileira, e pessoas pretas são 10,2%. Juntos, o percentual de negros (pardos e pretos) indicam que 55,5% da população se autodeclara como não branca.
Essa tendência se mantém em 2024. De acordo com informações compiladas pela Agência Brasil a partir de dados da Rede, o número de mortes por policiais nesses mesmos estados alcançou uma média diária de 11 vítimas, novamente com predominância de pessoas negras entre os mortos.
Homicídios: 2,7 vezes maior para negros
Os dados gerais de homicídios também mostram um padrão semelhante. O Atlas da Violência, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), aponta que a taxa de homicídios entre pessoas negras permanece significativamente superior à registrada entre pessoas não negras.
Conforme o relatório, o risco de um negro ser vítima de homicídio no Brasil é 2,7 vezes maior em comparação a alguém que não é negro. A tendência se repete nacionalmente, independentemente de fatores como porte populacional, renda média municipal ou nível de urbanização. O Atlas ressalta que, em diversos estados, a taxa de assassinatos de negros é tão superior que chega a representar três quartos de todas as mortes violentas registradas no período analisado.
Violência sexual
A violência sexual também demonstra a questão racial. A Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher Negra, produzida pelo DataSenado, indica que, entre as ocorrências registradas e classificadas por cor ou raça, 62% das vítimas são pretas ou pardas. O estudo aponta ainda que mulheres negras declararam, em maior proporção, ter sofrido algum tipo de agressão sexual ao longo da vida quando comparadas a mulheres brancas.

Outros levantamentos, como os da organização Criola, reforçam esse cenário, indicando que operações policiais podem desencadear não somente violência letal, mas episódios de agressões físicas, psicológicas e sexuais contra mulheres negras, cis e trans, sobretudo em territórios periféricos. Embora esses dados não tratem exclusivamente de 2023 e 2024, eles confirmam o padrão histórico que persiste nos números mais recentes.
Policiais mortos
A desigualdade atinge inclusive os profissionais de segurança. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública, edição 2025, que compila os dados referentes ao ano de 2024, registrou 170 policiais mortos em serviço ou fora dele em circunstâncias relacionadas à profissão. Entre esses agentes, 65,4% eram negros.
Um desses casos foi o do policial militar Leandro Martins do Patrocínio, de 30 anos, morto com requintes de crueldade em 2021. Ele era casado e tinha uma filha pequena. Estava de folga e em um baile funk quando foi capturado por um membro de facção criminosa que o reconheceu. Foi torturado, asfixiado, morto e seu corpo foi enterrado ao lado da favela Heliópolis, zona Sul da capital.

Embora a composição étnica das forças policiais varie entre estados, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, responsável pelo Anuário, aponta que a proporção de policiais negros mortos supera o percentual de participação desse grupo no efetivo total.
O Anuário também destaca que 82% das vítimas de mortes decorrentes de intervenção policial registradas em 2024 eram pessoas negras. Essa dupla vitimização — civis negros mais expostos à letalidade e policiais negros mais expostos à morte em serviço — demonstra que a desigualdade racial desafia toda a cadeia da segurança pública.
Reflexos estruturais
Relatórios oficiais também trazem análises de especialistas sobre a persistência desses indicadores. A Rede de Observatórios da Segurança registra declarações de pesquisadores indicando que o padrão de letalidade policial observado nos estados analisados está associado a fatores históricos e estruturais. Segundo a cientista social Sílvia Ramos, que coordena estudos da Rede, agentes incorporam percepções distintas de risco e suspeição a depender da aparência do cidadão abordado, reproduzindo desigualdades que se refletem nos desfechos fatais.
No Atlas da Violência, pesquisadores do Ipea e do FBSP também afirmam que o distanciamento entre brancos e negros nas estatísticas de homicídio segue “persistente” e “expressivo”, mesmo quando controladas variáveis socioeconômicas. Já o Anuário ressalta que as mortes de policiais negros ocorrem, com frequência, em contextos associados a maior risco operacional, reforçando a necessidade de medidas institucionais de proteção.
Racismo persiste
Os dados oficiais de 2023 e 2024 apontam, de forma consistente, para um quadro de violência profundamente marcado pela cor da pele. Pessoas negras continuam a representar a maior parte das vítimas de homicídios e de mortes provocadas por intervenção policial, assim como estão mais expostas à violência sexual e, dentro da própria corporação policial, também são maioria entre os agentes mortos.
O conjunto das estatísticas reforça que a desigualdade racial permanece como um componente central da violência no Brasil. A partir dos dados apresentados por organismos como Ipea, Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Rede de Observatórios da Segurança e DataSenado, o cenário evidencia que o enfrentamento desse fenômeno exige ações coordenadas, políticas públicas específicas e monitoramento transparente, ainda mais diante da persistência das disparidades ao longo dos anos analisados.
Não é convite à acomodação
Para o presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB Ribeirão Preto, Leandro Profeta, advogado especialista em Direito do Trabalho e Consultoria Empresarial, é possível e necessário comemorar a data e cobrar providências ao mesmo tempo.
“O Dia da Consciência Negra não é um convite à acomodação, ele é um lembrete de que a luta pela igualdade racial segue urgente, e os dados que você trouxe evidenciam isso de forma contundente”, aduz Profeta.

O advogado entende que a letalidade policial, que atinge majoritariamente pessoas negras, os índices de homicídio que recaem de maneira desproporcional sobre a população negra, a violência sexual que vitima mais mulheres negras, e até o número de policiais negros mortos em serviço revelam um país que ainda reproduz desigualdades profundas e persistentes.
“Mas é justamente por esse cenário que a data tem valor. Não se celebra a realidade atual; celebra-se a resistência histórica, a preservação da memória, o protagonismo cultural e político, e a construção contínua de um Brasil que ainda não existe, mas que precisa existir. O dia funciona como um farol, lembrando à sociedade que nada muda sem mobilização, sem debate público e sem enfrentamento direto às estruturas que produzem desigualdade”, aponta o presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB Ribeirão Preto.
Profeta elenca algumas prioridades na luta contra o racismo. “Políticas de segurança pública com recorte racial, que estabeleçam metas claras de redução da letalidade e valorizem a vida, além de formação adequada e contínua para agentes de Estado, especialmente na área de segurança, justiça e educação, com foco no combate ao racismo”, defende.
Além disso, o advogado entende que é preciso ampliar oportunidades educacionais e profissionais, rompendo com o ciclo de vulnerabilidade que atinge, de forma mais intensa, a população negra. Ele também cobra políticas específicas para proteção das mulheres negras, que enfrentam níveis ainda maiores de violência. E a revisão de práticas institucionais que perpetuam desigualdade, do sistema penal ao mercado de trabalho.
“Portanto, sim: há motivos para comemorar. Comemora-se a coragem, a resistência e a construção de identidade. Mas a celebração não elimina a urgência da mudança. Ela a impulsiona”, conclui Leandro Profeta.

