O assunto sempre gerou polêmica em Ribeirão Preto: para que time torcem os jornalistas esportivos, Comercial ou Botafogo? Por mais que seja óbvio que todos que acompanham futebol tenha uma equipe do coração (e o cronista é um desses apaixonados), poucos são os que têm coragem de assumir a cor da camisa. Pelo menos, se escolha for entre a dupla ComeFogo.
Em 1999, às vésperas de mais um clássico entre eles, o Tribuna colocou a mão nesse vespeiro e ouviu a imprensa esportiva de Ribeirão Preto sobre o assunto. Muitos desconversaram. Mas, como nos bastidores e entre colegas de profissão as preferências nem sempre eram escondidas, a matéria trouxe um “Ranking da paixão”, com o time dos jornalistas da época.

“Todo radialista deveria fazer como eu, ser claro e anunciar sua preferência. É impossível alguém torcer para dois times que são adversários entre si, isso é coisa de gente despreparada”, ensinava Renê Andrade, assumidamente comercialino. “Já imaginou que troço sem graça se todos torcessem para o mesmo time?”.
Assim como ele, o comentarista botafoguense Adalberto Valadão alfinetava os colegas que escondiam o jogo. “Não sou de dar bandeira, mas acho uma mediocridade torcer escondido e ficar em cima do muro em público. Ou é ou não é”, disse, com sua tradicional sinceridade.
César Bruno, grande nome da narração na época, primeiro tentou disfarçar. “Sou são-paulino, nada mais que isso. Aqui em Ribeirão Preto torço para os dois, afinal vivo do sucesso desses clubes”. Bastaram alguns minutos para assumir, ainda que timidamente, o que todos no meio esportivo já sabiam. “Dizem que sou comercialino e isso não me incomoda. Quero mesmo é ser reconhecidamente imparcial e isso sei que sou”, afirmou.
Wilson Roveri, comentarista que por muitos anos escreveu diariamente neste Tribuna, também quis escapar, mas derrapou nas palavras e entregou a simpatia pelo Botafogo – o que não era de se estranhar, pois o jornalista chegou a Ribeirão Preto quando o Comercial ainda não havia ressurgido, em 1954. “Ninguém nunca me ‘xingou’ de comercialino, todo mundo diz que sou botafoguense”.
A matéria destacou que a maioria dos cronistas torcia silenciosamente, embora alguns casos fossem tão explícitos que nem precisassem de confissão. Roveri, que trabalhou na imprensa esportiva carioca, ressaltou as diferenças neste sentido entre Ribeirão Preto e o Rio de Janeiro. “Lá tudo é festa e promoção, e confessar-se apaixonado por um time pode render dividendos para o cronista. Até mesmo em dinheiro. Aqui não, a coisa é mais sisuda, cara fechada”, analisou.
Vinte e cinco anos depois, o cenário mudou – embora ainda tenham aqueles que não confessem publicamente o time, nem sob tortura.
Fabiano Ribeiro, editor das edições dominicais do Tribuna, já trabalhava em 1999. Na matéria do jornal, foi citado entre os comercialinos. Natural de Batatais e apaixonado pelo Palmeiras, ao lado do time da cidade, ele não desmente. “Em Ribeirão não chega a ser torcida, mas nunca escondi minha preferência pelo Comercial, o que não quer dizer que torço contra o Botafogo. Mas, se tiver um Come-Fogo, minha torcida é pelo Leão do Norte”, admite, sem ficar em cima do muro.
O jornalista acredita que quem trabalha com futebol é porque gosta do esporte. “E quem gosta de futebol tem um time de coração”. Por isso, Fabiano não vê motivos para esconder ou mentir para quem torce. “Um dos princípios do jornalista é a verdade. No passado havia uma preocupação de esconder o time de coração. Eu acho bobagem. Hoje em dia, as coisas são mais nítidas”.
O colunista do Tribuna Luiz Carlos Briza chegou a Ribeirão Preto, para trabalhar no rádio esportivo, em 1971. Viveu a época de grande rivalidade entre a dupla ComeFogo, com os dois times no Campeonato Nacional, onde tudo era motivo para divisão. Talvez por isso, seja contra o jornalista assumir o time de coração.

“Há duas vertentes a considerar: uma, o profissional de imprensa que assume torcer por um clube perde a credibilidade; outra, com o advento da internet, os torcedores mudaram o comportamento, não se preocupam com credibilidade, preferem o embate com os jornalistas-torcedores ‘zoando-os’ nas redes sociais”, acredita Briza.
Ele cita que poucos profissionais conseguiram manter a credibilidade sendo torcedores. “O corintiano Juca Kfouri é um deles. Em Ribeirão Preto, há o exemplo de dois profissionais que nem falavam publicamente, mas eram de amplo conhecimento suas preferências: o comentarista Miguel Liporasssi (comercialino) e o jornalista Márcio Javaroni (botafoguense), desenvolvendo suas funções com seriedade sendo respeitados pelas duas torcidas”, afirma.
“Com as redes sociais, jornalistas e radialistas adotaram esta estratégia para se popularizarem, aumentando audiência (acessos), sentem prazer em assumir para que time torcem”, completa Briza, sem dizer qual seu time preferido em Ribeirão Preto. “Exatamente porque não tenho. Se tivesse eu diria, mesmo”.
Quanto mais fanático, melhor!
A zoeira é garantida: o escudo do adversário é apresentado em rosa, apelidos pejorativos e comentários não são evitados – muito pelo contrário, até incentivados. Os narradores e comentaristas não se importam se a transmissão é de ComeFogo, vestem (literalmente!) a camisa e gritam gol a plenos pulmões, assim como reclamam de lances contrários –mesmo aqueles que nada têm de irregular.
Se ainda não acompanha, bem-vindo à mídia clubística, segmento que cresce cada vez mais e se baseia por cobrir um único clube, sem esconder a paixão e o fanatismo por suas cores.
Por falar a ‘língua do torcedor’, até mesmo porque na maioria das vezes são formados por quem saiu das arquibancadas, ocupam canais próprios nas plataformas digitais e ganham fãs por divulgar conteúdo exclusivo, nem sempre acompanhado pela imprensa tradicional.
“Nossa história começou exatamente por faltar aquele tempero clubista. Apesar de muitos da mídia tradicional terem seu clube do coração, aqui em Ribeirão Preto sempre foi uma coisa muito complicada você falar que torce para um ou outro, afinal todos trabalham na cobertura dos dois times. Faltava tempero, aquela narração ‘o meu time é o melhor do mundo’”, conta Gustavo Carbonere, mais conhecido como Velha Guarda, um dos fundadores da TV Bafo Chopp.
O canal surgiu dentro da torcida. “A Bafo Chopp foi fundada para não ser apenas uma torcida organizada, mas sim fazer algo a mais”, conta Gustavo Guerra, o Muçarela, um dos fundadores. “Queríamos levar ao comercialino a informação verdadeira, direto da fonte. Por não estar o tempo todo dentro do clube, muitas vezes a imprensa não sabe de tudo. E achávamos que era importante o torcedor saber”.

Com o slogan ‘de comercialino para comercialino’, a mídia foi logo sucesso entre os torcedores. Inicialmente, as gravações aconteciam em um local alugado. “Pensamos: a torcida tem uma sede social, em frente ao Palma Travassos. Por que não usar um desses cômodos e fazer um estúdio? Pegamos o que era gasto com o aluguel e com a ajuda dos torcedores compramos os equipamentos”, lembra Guerra, que se afastou do programa quando assumiu a presidência do Conselho Deliberativo do Comercial.
Em uma justa homenagem, o estúdio da TV Bafo Chopp ganhou o nome do radialista Renê Andrade.
“Sabemos dos bastidores, muitas vezes temos notícias até mais frescas. E, ainda que clubistas, tentamos fazer as coisas de maneira ética, profissional, sem agredir ninguém”, garante Velha Guarda, que trabalha com imóveis e é uma das caras na telinha alvinegra. “Mas sempre tem aquela brincadeira né”, admite.
O canal da TV Bafo Chopp no YouTube tem mais de mil inscritos. No Instagram, são cerca de 3,8 mil seguidores.
Também sucesso entre os torcedores, o Pantera Cast é o principal canal botafoguense. O projeto teve início em 2022, reunindo quatro torcedores: Rafael Beraldi, Nicollas Oliveira, Murilo Bernardes e Gabriel Barbosa – nos dias de podcast, junta-se a eles Matheus Gramigna.
Os três primeiros tinham ligação com a comunicação: Beraldi e Oliveira participavam do time audiovisual do Botafogo, Bernardes era estudante de jornalismo (foi também repórter deste Tribuna). Apaixonado por jornalismo e pelo Pantera, Barbosa enviou vídeos pedindo uma chance e passou na ‘peneira’.
Juntos, são responsáveis pelo podcast que apresenta mais de 600 mil visualizações no YouTube – ao todo são 3,4 mil seguidores na plataforma e outros 8 mil no Instagram.
E qual a fórmula para o sucesso? “Tratamos o Botafogo com carinho. Enquanto a mídia tradicional fala primeiro dos times da capital e destina pouco espaço para o clube, nosso foco é total”, afirma Gabriel Barbosa, que além de integrar o projeto é proprietário de uma oficina mecânica.
“No Pantera Cast o botafoguense também se sente parte integrante”, continua. “Enquanto os jornalistas estão distantes da torcida, nós estamos no estádio, na arquibancada, na cativa. Antes do jogo conversamos com os torcedores, comemos e bebemos com eles”.
Fazendo eco com Velha Guarda, Murilo Bernardes, único jornalista entre os integrantes da mídia clubística ouvidos pelo Tribuna, destaca que os canais devem ser responsáveis. “Refletimos que é preciso entender o nosso posicionamento e a nossa responsabilidade sobre o que falamos. A gente nunca se preocupou em falar, bater, fazer piada e brincar, mas é necessário cuidado pois quando isso influencia as pessoas e incita o ódio passa a ficar perigoso”, adverte.

