Por Adalberto Luque
A cearense Maria, hoje com 80 anos, sofreu as consequências de viver em um relacionamento abusivo. Nascida em Fortaleza e farmacêutica formada, era vítima frequente das agressões psicológicas e físicas, além das ameaças de morte que o marido, um economista e professor universitário nascido na Colômbia, lhe fazia.
Certo dia, Marco Antônio Heredia Viveros excedeu todos os limites. Na tentativa de forjar um assalto, usou uma espingarda para tentar matar Maria.
Gravemente ferida, foi levada a um hospital. Mesmo com meses de tratamento e passando por diversas cirurgias, veio o inevitável. O tiro a deixou paraplégica, presa a uma cadeira de rodas.
Mesmo assim, encontrou forças para voltar a morar com o marido. Tinha medo de perder a guarda das filhas. Na volta, ficou 15 dias em cárcere privado e sofreu uma nova tentativa de homicídio: o marido tentou eletrocutá-la durante o banho.

Bastante debilitada, voltou para um hospital. Mesmo com todas as dificuldades, denunciou o caso à Justiça. As investigações comprovaram que ela havia sido vítima de duas tentativas de homicídio – na época ainda não havia a tipificação de feminicídio.
O julgamento do marido ocorreu oito anos depois da segunda tentativa. Viveros foi condenado a 15 anos de prisão, podendo recorrer em liberdade. Mais cinco anos se passaram e a pena caiu para 10 anos e 6 meses de prisão. A defesa conseguiu anular o julgamento.
Com a ajuda de amigos, Maria conseguiu levar o caso a duas cortes internacionais. O Brasil foi notificado e oficiado várias vezes, mas permaneceu em silêncio. O país foi condenado por negligência e tolerância à violência doméstica e familiar contra as mulheres brasileiras.
O hoje ex-marido foi condenado a 8 anos de reclusão e só foi preso 19 anos depois do crime, às vésperas da prescrição. Maria deixava de ser uma mulher vítima da violência de gênero para tornar-se um símbolo da luta de todas. Afinal, seu nome é Maria da Penha Maia Fernandes. Graças à sua luta pessoal, o Brasil criou, em 2006, a Lei Maria da Penha para punir com rigor aqueles que praticam a violência de gênero no país.
Desafio
Desde que entrou na pauta pública, a violência contra as mulheres segue sendo um dos grandes desafios enfrentados no campo da segurança pública, tanto pela forma como os dados são produzidos e sistematizados, quanto em relação à implementação de políticas públicas eficazes preventivamente.
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (ABSP) 2025, entre os nove crimes monitorados no que diz respeito à violência de gênero, apenas dois apresentaram queda em relação a 2023. Os demais registraram crescimento expressivo, de 0,7% no caso de feminicídio a 19% nas tentativas de feminicídio.
Em 2024, pelo menos quatro mulheres morreram vítimas de feminicídio por dia no Brasil. Feminicídio é o crime cometido em razão da vítima ser mulher. O ABSP cita que 3.700 mulheres perderam suas vidas de forma violenta em 2024, das quais 1.492 foram vítimas de feminicídio.
Os números, todavia, podem estar subnotificados. O anuário cita que a não tipificação como feminicídio não significa, necessariamente, a ausência de motivação de gênero, mas pode indicar resistência de operadores do sistema de Justiça ou falhas em processos de investigação para o devido enquadramento.
Feminicídio teve 129 vítimas
A Secretaria de Segurança Pública (SSP) do estado de São Paulo tem em seu portal os dados de violência de gênero até junho deste ano. Os dados são disponibilizados individualizando apenas entre Grande SP ou interior. Não é feito por município.

Mesmo assim, o número é preocupante. No primeiro semestre deste ano, 129 mulheres foram vítimas de feminicídio. Isso representa uma morte a cada 33 horas, apenas porque a vítima era mulher.
A cada hora, sete mulheres sofreram lesão corporal dolosa, isto é, quando há intenção do agressor em ferir a vítima. Foram 30.317 vítimas de agressões físicas entre janeiro e junho deste ano.
A violência contra a mulher registrou 11 ameaças por hora. No total do semestre foram 48.813 casos de ameaça física ou psicológica.
Agosto Lilás
Uma das formas de alertar a sociedade para a gravidade do problema que envolve a violência de gênero está na campanha Agosto Lilás. É um chamado à ação contra a violência às mulheres.
Em um país onde os casos continuam a crescer, dar visibilidade à luta diária de milhares de brasileiras é mais do que necessário. Segundo a pesquisa “Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil” (2025), divulgada em março desse ano pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em conjunto com o Instituto DataFolha, mais de 21 milhões de mulheres foram vítimas de algum tipo de violência nos 12 meses anteriores à coleta dos dados.
Esse número representa 37,5% das brasileiras, o maior índice desde o início da série histórica em 2017. As agressões acontecem principalmente dentro de casa e, em grande parte, são cometidas por parceiros ou ex-parceiros. Entre os tipos mais recorrentes está a violência psicológica, que afeta profundamente a saúde emocional e a autoestima das mulheres.
Segundo a mesma pesquisa, mais de 31% das entrevistadas relataram ter sofrido xingamentos, humilhações ou insultos no último ano. Por não deixar marcas visíveis, esse tipo de violência muitas vezes passa despercebido ou é minimizado, inclusive pelas próprias vítimas, que só reconhecem os sinais quando já se afastaram da relação.
Violência psicológica
Rita Tonielo, empresária, comunicadora e ex-vereadora de Sertãozinho, na região metropolitana de Ribeirão Preto, sofreu violência psicológica por alguns anos dentro de um relacionamento. “Demorei anos para entender que a situação que vivia era um abuso psicológico. Quando saí desse relacionamento, percebi que estava em um relacionamento abusivo e virei a chave focando ainda mais em mim como mulher e na minha carreira”, explica ela.

Hoje, Rita é referência regional na TV e no rádio e inspiração para mulheres, usando suas redes sociais para reforçar a importância da autoestima e os cuidados com a violência, que pode vir de várias formas. O seu relacionamento era marcado por controle emocional e desvalorização. “Dentro da relação, eu não via aquele comportamento como violento”, relembra e complementa: “A violência psicológica é silenciosa, disfarçada de zelo. A gente só entende quando não está mais olhando para si mesma.”
Mas a história da comunicadora vai muito além da dor já superada. Mãe de dois filhos, encontrou força na própria trajetória para reescrever seu destino. Formada em Odontologia, foi uma das vereadoras mais jovens de sua cidade, com forte atuação em pautas sociais e voltadas às mulheres.
Durante a pandemia, liderou projetos voltados à valorização da autoestima feminina, desenvolvendo livros, gibis educativos e até uma boneca autoral que inspira meninas a acreditarem em seu potencial.
À frente do programa Dra. Rita, na STZ TV, onde também atua como coordenadora de programação, tornou-se voz ativa na promoção de espaços mais acolhedores e igualitários, além de ser madrinha de iniciativas sociais voltadas à equidade de gênero e inspirar, diariamente, outras mulheres a se reconhecerem como protagonistas de suas próprias histórias.
Importunação sexual
Na manhã de quarta-feira, 19 de agosto, integrantes da Patrulha Maria da Penha da Guarda Civil Metropolitana (GCM) proferiram uma palestra no Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) da Prefeitura de Ribeirão Preto. Dentro das atividades do Agosto Lilás, o objetivo foi conscientizar e fortalecer a prevenção e a erradicação da violência doméstica.
Durante a palestra, em que participaram dezenas de mulheres, foram divulgados números para que se possam fazer denúncias anônimas, ajudando no combate a esse tipo de violência.
No período da tarde, uma das mulheres que participou da palestra estava em um ponto de ônibus no Quintino Facci I, próximo ao pontilhão que leva ao Quintino II e Simioni.
Um homem se aproximou e começou a se masturbar na frente da mulher. Ela acionou a GCM, que rapidamente chegou ao local e prendeu o maníaco, que foi levado para a Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), onde ficou à disposição da Justiça por importunação sexual.
Mais que uma ocorrência, o caso foi um exemplo da importância do trabalho realizado pela Patrulha Maria da Penha. Criada em 2018 e integrada por agentes da GCM, a Patrulha Maria da Penha tem sido um diferencial no atendimento às vítimas de violência doméstica.
Segundo a guarda civil Girlei Marcondes, que integra a Patrulha Maria da Penha, o serviço oferece proteção, garantindo o acompanhamento de mulheres que possuem medida protetiva. Além de garantir segurança e proteção dia após dia, também previne novas formas de violência.
“A Patrulha Maria da Penha tem sido fundamental na vida de muitas mulheres, trazendo acolhimento, presença do poder público e a certeza de que elas não estão sozinhas”, conta Girlei.
Em um balanço prévio, a Patrulha Maria da Penha realizou, entre janeiro e abril de 2025, 450 atendimentos, nos quais foram registrados 10 boletins de ocorrência e quatro prisões em flagrante. São emitidas em média 250 medidas protetivas de urgência por mês. Essas medidas são encaminhadas pela Justiça para a Patrulha e as mulheres passam a ter atenção especial.

“A Patrulha faz acompanhamento das medidas protetivas de urgência que são encaminhadas através do Judiciário e MP, buscando assim dar efetividade à lei e garantindo a segurança desta vítima”, acrescenta.
Girlei já presenciou muitos casos marcantes em seu trabalho na Patrulha Maria da Penha e considera todos importantes e motivadores. Mas dois, em especial, estão sempre presentes em sua memória.
“Uma mulher culta, estudada, que já havia sofrido todos os tipos de violência: psicológica, física, tapas, estupros e até cárcere privado. Para garantir sua vida e dignidade, foi preciso encaminhá-la para outra cidade. Outra mulher, que tive a alegria de reencontrar cinco anos depois, me disse, com brilho nos olhos, que foi salva pela Patrulha Maria da Penha. Conseguiu se libertar de um relacionamento abusivo e, graças à rede de apoio, pôde renascer”, emociona-se Girlei.
Revogação e frustração
Um dos problemas frequentes encontrados no atendimento às vítimas de violência de gênero ocorre por conta da dependência financeira e emocional da vítima em relação ao agressor.
“Com frequência, isso acontece quando a mulher pede ao juiz a revogação da medida. O juiz pode entender que ela não está em risco, porém essa mulher pode correr um risco ainda maior por acreditar que possa reconstruir sua história, afinal nenhuma mulher se casa para separar”, constata.
Girlei também se sente frustrada quando um caso de agressão se torna feminicídio. “Nos sentimos muito frustrados, porque entendemos que em algum ponto falhamos ou não conseguimos alcançar aquela mulher a tempo. Temos a consciência de que precisamos levar a cada vítima mais informação, mais proteção e também lutar por políticas públicas eficazes, para que a violência doméstica seja de fato erradicada. Cada vida perdida é um chamado para redobrar nossos esforços.”
Pela experiência adquirida no trabalho junto à Patrulha Maria da Penha, Girlei entende que relações tóxicas, na maioria das vezes, evoluem para agressão.
“Começa com frases como ‘não gosto da sua roupa’ ou ‘não quero que fale com sua amiga’. Gestos muitas vezes confundidos com ciúme ‘bonitinho’ ou cuidado são sinais de controle. Aos poucos, se transforma em violência psicológica, moral, sexual, patrimonial e até física”, relata.

Além do trabalho da Patrulha Maria da Penha, existe uma grande rede de apoio que trabalha de forma integrada para acolher, atender, proteger e garantir a segurança da vítima. “Essa rede envolve o Judiciário, Ministério Público, Assistência Social (SEMAS), Defensoria Pública, além da parte de segurança, como a GCM, Polícia Militar e a Delegacia da Mulher (DDM) 24 horas. Um trabalho conjunto, pensado para cuidar da mulher e garantir que essas agressões e violências não se repitam”, destaca Girlei.
Mas para que tudo possa ser oferecido às vítimas de violência doméstica, antes de tudo, é preciso que as vítimas se conscientizem de seus direitos e acionem os órgãos competentes com urgência quando estiverem ameaçadas.
“A Patrulha Maria da Penha pode ser acionada através do telefone 153, da GCM, ou pelo telefone (16) 3632-4747. As denúncias podem ser feitas de forma anônima. Mas existem outros contatos, como o Disque 180 e por um WhatsApp anônimo: (61) 9610-0180. A PM atende pelo 190. As mulheres também podem buscar ajuda diretamente na DDM, que fica na Avenida Costábile Romano e atende 24 horas. Se preferir, pode registrar um Boletim de Ocorrência Online. A vítima tem múltiplos caminhos seguros para pedir proteção e atendimento”, conclui Girlei.
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