Antonio Carlos Augusto Gama *
O Doutor Teócrito de Oliveira e Sá escrevia as suas sentenças com o próprio punho, em papel ordinário e depois as datilografava. Era um hábito, um vício, mas quem é que não os tem? Esclareça-se, porém, que as manuscrevia a lápis, rapidamente, para a depois, quando as datilografava, corrigi-las e dar-lhes forma escorreita.
Às vezes, também, quando o caso era simples, e depois das alegações orais das partes, ditava-as diretamente ao escrivão. Era homem discreto, magro, sem intimidade com quem quer que seja. O seu trabalho era árduo e constante, e só descansava aos domingos, nos feriados e nas férias.
Por isso, parecia surpreendente que estivesse casado com Dona Maria Amélia, mulher exuberante, cheia de riso, festiva, e que não tinha papas na língua. Não raro, era preciso até adverti-la, para que se contivesse.
Debalde. Afinal, a vida é feita destes contrastes que, embora evidentes, fazem a harmonia dos contrários. De casa para o Fórum, do Fórum para casa, no passo medido. O que o irritava era que Maria Amélia, ainda que raramente, interviesse em suas funções judicantes. Dizia-lhe: “O que não está nos autos, não está no mundo”.
E ela retorquia: “Você vive no mundo da Lua”. Ele, porém, insistia: “Maria Amélia, não admito que você se interponha em minhas funções”. Queria dizer-lhe que o lugar dela era a casa, as prendas domésticas.
O que o abalou profundamente, numa discussão áspera com a mulher, foi que ela teimava em afirmar-lhe que Madalena, acusada de ter matado o próprio marido, era inocente, e que ele devia absolvê-la. “Maria Amélia, eu não admito que você…
” O dedo indicador em riste, e trêmulo, ele quase o aproximou do nariz de sua mulher. E ela agarrou-o, lambendo-o e rindo. Não que Maria Amélia tivesse amizade particular com Madalena. Era até incompreensível que ela a defendesse.
“Você deve convir que uma mulher não mata senão por muito amor ou ódio”, ela argumentava.“Mata também por dinheiro”, replicava ele. “As causas de um homicídio são múltiplas e até secretas”. “Se eu tivesse de matá-lo, Teócrito, não o mataria a tiros de revólver.
Mataria devagarzinho, suavemente. O juiz alarmou-se. “Não me diga que você já pensou em matar-me…? “Não. Eu o mato na cama. E você bem que gosta.” O diálogo ia tornando-se quase obsceno. O Doutor Teócrito de Oliveira e Sá fechou a cara.
“Não quero ouvir nem mais uma palavra.” Não compreendia por que a sua Memélia persistia em sustentar que Madalena era inocente, que aquilo fora um assalto. A grande maioria das pessoas achava que ela de fato assassinara o marido. Presa preventivamente enquanto o processo seguia, Madalena não havia confessado.
Mas também as suas explicações não eram convincentes. O juiz, ainda que aquilo não fosse usual, mandou intimar e trazer à sua presença a ré, com o Promotor de Justiça e o advogado de defesa também presentes. “Dona Madalena, a senhora tem mais alguma explicação a dar ao que já disse no seu interrogatório?”
“Não, Doutor Juiz… Eu já disse tudo.” O Doutor Teócrito suspirou. E encarou-a, com curiosidade. Era uma mulher de seus trinta e cinco anos, bonita, com um rosto lavado e olhos fundos. A sua prisão, ou por conselho de seu advogado, fazia-a vestir-se discretamente, quase de luto.
Ela e o seu defunto marido não tinham filhos. As brigas do casal eram conhecidas da vizinhança. “E como é que os assaltantes não mataram também a senhora?” “Eu me tranquei no banheiro.” Não seria difícil arrombar a porta do banheiro e matá-la também.
Ela poderia reconhecer os alegados assaltantes. A polícia procurara-os sem êxito. “Pode retirar-se, Dona Madalena.” Os dois soldados levaram a mulher de volta para a prisão. E Maria Amélia a repetir que a mulher era inocente… Memélia, nem mais uma palavra.
Você está me pondo numa sinuca de bico.” Que ideia, que lembrança! Acabava de recordar-se de que fora um bom jogador de sinuca, nos seus tempos de acadêmico. Mas só um jogador muito hábil sai de uma sinuca de bico. Daquela vez, o Doutor Teócrito de Oliveira e Sá não rascunhou a sua sentença a lápis, para depois a datilografar.
Datilografou diretamente, em quatro páginas incisivas, impronunciando Madalena. PRIC. Datou e assinou. A acusação recorreu, mas o Tribunal manteve a sua decisão. Naquela noite, depois de lavrar a sua sentença, o Doutor Teócrito disse a Maria Amélia, antes de irem para a cama: “Maria Amélia, hoje eu não quero conversa. Estou muito abalado, muito confuso.” A sua confusão, porém, não durou muito diante da exuberante Memélia.
* Promotor de Justiça aposentado, advogado, professor de Direito e escritor

