Tribuna Ribeirão
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“A praça é do povo como o céu é do condor”

(Castro Alves – Poeta dos Escravizados)

Roberto Tardelli *

Nunca será demais lembrar que logo em seu primeiro artigo, nossa Constituição vence o dilema hamletiano e assim se define:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…)

III – a dignidade da pessoa humana;

Tomemos como assento fundamental essa premissa: a proteção à dignidade humana é a base de nossa formatação republicana.

Ribeirão Preto é uma cidade com atualmente cerca de 760.000 habitantes, segundo projeções do IBGE e é sede de região metropolitana que nos projeta para um milhão e setecentas mil pessoas, segundo dados do SEADE, abrangendo quinze municípios.

A cidade abriga naturalmente uma população flutuante, aquela a quem se denominou população de rua, pessoas, em verdade, que se situam abaixo da linha da pobreza, traçada pela ONU e que não possuem o mínimo para viver com dignidade mínima que as separe dos demais mamíferos do reino animal. Na última contagem, feita em 2022, somavam em torno de mil e oitocentas, pouco mais de 0,23% da população fixa da cidade.

Nessa ordem de grandezas, a Câmara Municipal de Ribeirão Preto fez aprovar uma lei que “determina a colocação de obstáculos para cercar 13 praças públicas da cidade com alambrados ou gradis, como forma de evitar o uso desses espaços para tráfico de drogas e a permanência de pessoas em situação de rua”. Seu autor dessa consta ser o vereador Junin Dêdê, do PL e atinge praças da Zona Norte da cidade, onde vive a população mais vulnerável.

À edilidade, na sua maioria, não tocou que referido diploma legal se constitui em um acabado exemplo do mais odioso higienismo social, que nada mais é do que uma espécie de política pública às avessas, com viés claramente sectário, na medida em que cuida de legitimar a mais sórdida das discriminações sociais, o racismo.

Nossas cidades, que remontam à antiguidade, sempre tiveram seus espaços públicos. Eram a essência da polis, no sentido de que havia um espaço urbano que abrigava a diversidade e foi essa diversidade que informou o nascimento e fortalecimento das cidades, como forma de organização social.

As praças se constituem bens públicos de uso comum do povo, no dizer do Código Civil e significa afirmar que que ninguém que esteja em território pátrio pode ser impedido de ir ficar ou permanecer na praça.

O cancioneiro popular é o depósito da sabedoria do povo e das verdades que esse povo estabeleceu; tão claro isso que vem até em uma canção conhecidíssima, uma obra-prima da sofrência: “Seu guarda eu não sou vagabundo/Eu não sou delinquente, sou um cara carente/ Eu dormi na praça pensando nela”. Nas cidades, há uma lei não escrita: ninguém pode ser impedido de dormir na praça, principalmente se não tiver outro lugar para dormir, seja lá pelas razões que forem.

Cercar praças é de uma violência institucional urbana que marca ausência de compaixão pelo vulnerável, pelo indefeso, pelo invisível moral, por aquele que não possui voz, salvo o grito de dor. Cercar praças é fruto de uma concepção racista do espaço urbano. Em verdade, os moradores de rua são nossos espelhos burgueses, posto fazerem nas ruas aquilo que fazemos aquatro paredes, em uma sociedade violenta, que aterroriza mulheres e crianças, que tem na violência doméstica seus índices mais vergonhosos. O bêbado anônimo da praça é o mesmo bêbado ilustre dos casarões ou apartamentos requintados. A única diferença é que está exposto e por estar exposto, acaba por nos revelar quem somos e quiçá por essa razão sejam tão odiados.

Quem expulsou os vulneráveis da praça possui cama quente e bife na mesa e não sabe que a Política é nossa maneira civilizatória de combater a miséria e jamais de aprofundá-la; eles deveriam se cobrir de vergonha e pedir perdão à população por sua insensibilidade moral, por virar as costas ao povo, por desdenhá-lo de forma tão escancarada.

* Ribeirão-pretano, procurador de Justiça aposentado, advogado, professor e escritor; atuou com destaque em importantes casos como o de Suzane Von Richthofen e Irmãos Cravinhos

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