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Coletânea revela facetas pouco exploradas de Octavia E. Butler

Por André Cáceres

Octavia E. Butler tinha dez anos quando entrou numa livraria pela primeira vez. Ela perguntou à atendente se crianças podiam entrar, mas a questão implícita era: “Crianças negras podem entrar?” A autora narra essa e outras memórias em um texto da coletânea Filhos de Sangue e Outros Contos, inédita no Brasil e lançada pela editora Morro Branco.

Apesar do reconhecimento da crítica – Butler venceu o Hugo e o Nebula, os dois maiores prêmios da literatura especulativa -, seus livros só alcançaram um público maior depois de sua morte precoce em 2006, aos 58 anos. Talvez por ser uma das precursoras do movimento afrofuturista, ela acabou rotulada como uma autora que trata de gênero e raça na ficção científica. No entanto, sua obra abrange esses temas, mas não se restringe a eles.

Publicado originalmente em 1995 e expandido em 2005, Filhos de Sangue e Outros Contos reúne sete narrativas breves e dois ensaios escritos entre 1979 e 2003, sendo assim um excelente exemplo da versatilidade temática de Butler. Nenhum dos contos aborda diretamente a questão racial e dois deles nem têm elementos fantásticos, demonstrando como a autora ia do realismo cru à mais imaginativa ficção científica sem qualquer amarra. Ao final de cada texto há um comentário da autora sobre a recepção da crítica àquela obra, curiosidades ou a inspiração do conto.

É por meio de uma dessas notas que Butler renega a interpretação da crítica para o conto que dá nome à coletânea, que trata da relação simbiótica entre uma família humana e um alienígena da espécie Tlic em um planeta distante da Terra. Os Tlics corriam risco de extinção por não encontrar hospedeiros adequados para suas crias, e os humanos, colonos que fugiam do próprio passado, precisavam de proteção e subsistência.

A relação entre humanos e Tlics é ambígua, codependente, alternando entre o carinho e o abuso. É difícil não pensar em relacionamentos abusivos contemporâneos ou mesmo nas descrições que Gilberto Freyre faz do ambiente doméstico entre senhores e escravos no Brasil do século 19. No entanto, Butler escreve: “Fico surpresa que algumas pessoas tenham interpretado Filhos de Sangue como uma história de escravidão. Não é. Mas é uma série de outras coisas. Em um primeiro plano, é uma história de amor entre dois seres muito diferentes. Em outro, é uma história de entrada na vida adulta em que um menino precisa assimilar informações perturbadoras e usá-las para tomar uma decisão que irá afetar o resto de sua vida. Em um terceiro plano, Filhos de Sangue é minha história sobre um homem grávido.”

Em Atalho, ela faz seu conto mais autobiográfico, protagonizado por uma trabalhadora braçal que lida com o assédio dos homens na rua, o bullying das colegas de fábrica e com o retorno do ex-namorado recém-libertado da prisão. Butler passou a maior parte de sua juventude presa a subempregos torturantes para pagar as contas e Atalho foi seu primeiro conto vendido. “Achava que aqueles empregos maçantes, opressivos, eram capazes de levar qualquer um à loucura”, escreveu a autora.

Uma de suas últimas histórias escritas, O Livro de Martha, mostra uma escritora que é abordada por ninguém menos que Deus. A divindade, que aparece para ela primeiro como um homem branco, depois como um negro e, por fim, como uma mulher negra, concede-lhe a capacidade de mudar apenas uma coisa no mundo. O conto em si é praticamente uma sessão de brainstorming entre Martha e Deus, mas revela algumas das mais íntimas angústias de Butler a respeito da humanidade. Ela trata da religiosidade também em um ensaio, ao apontar a Bíblia como uma de suas principais inspirações para tratar de relações afetivas complexas: “Histórias de conflito, traição, tortura, assassinato, exílio e incesto. Eu as lia com avidez. Isso, óbvio, não era bem o que minha mãe imaginou quando me encorajou a ler a Bíblia. Mesmo assim, eu achava essas coisas fascinantes e, quando comecei a escrever, explorei esses temas em minhas próprias histórias.”

É curioso que esse livro seja publicado no Brasil justamente em meio à maior pandemia dos últimos 100 anos, já que dois dos contos mais interessantes reunidos tratam justamente de doenças fictícias. Em O Entardecer, a Manhã e a Noite, Lynn e Alan são um casal de estudantes portadores de uma condição crônica e incurável que pode levar décadas para manifestar seus sintomas mais perigosos, quando o paciente “desvaira” e causa dano a si e a terceiros, levando potencialmente ao homicídio e ao suicídio.

Já o conto Sons da Fala retrata um futuro em que o diálogo fracassou por completo – as pessoas perdem as capacidades comunicativas de fala, compreensão, leitura e escrita graças a uma epidemia misteriosa, mas a metáfora para uma sociedade fraturada é clara. De caráter antecipatório, o conto anteviu como a politização de uma emergência sanitária pode levar ao fracasso em combatê-la e até mesmo em compreendê-la: “A doença, se é que era uma doença, tinha arrancado os vivos uns dos outros Enquanto varria o país, as pessoas mal tiveram tempo de pôr a culpa nos soviéticos (embora eles estivessem silenciando junto ao resto do mundo), em um novo vírus, um novo poluente, radiação, justiça divina”. A narrativa investiga o peso da comunicação para manter o frágil laço que nos conecta enquanto humanidade. Basta que o diálogo seja impossibilitado para que, de uma hora para a outra, o tecido social se esgarce. O cenário pós-apocalíptico marcado pela violência é uma hipérbole das tendências que Butler já enxergava nos EUA desde a década de 1970.

Filhos de Sangue e Outros Contos é um voo rasante pelo conjunto da obra de Octavia Butler, fundamental para a redescoberta das variadas facetas da autora. Os textos ali reunidos reafirmam o vigor de sua escrita e desconstroem rótulos associados a sua figura ao longo dos anos, restituindo-lhe a condição de escritora versátil cujas histórias são ainda mais valiosas hoje do que quando foram concebidas. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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