Por Julio Maria
O fato de o prêmio de Melhor Álbum de Música Popular Brasileira do Grammy Latino sair para o guitarrista e compositor mineiro Toninho Horta traz a reboque uma lista de conquistas que, por mais que historicamente o Brasil ofereça as costas para o Grammy e para os outros latinos, valem ser enumeradas: 1. Belo Horizonte, o álbum premiado de Toninho Horta e a Orquestra Fantasma, disputou com pelo menos dois gigantes da música brasileira adornados por discursos poderosos dos novos tempos: Elza Soares e Ney Matogrosso. 2. Belo Horizonte é um álbum de um instrumentista que deixou os discos de quatro cantores para trás: O Amor no Caos Volume 2, de Zeca Baleiro; Bloco na Rua (Deluxe), de Ney Matogrosso; Planeta Fome, de Elza Soares; e Caetano Veloso & Ivan Sacerdote, de Caetano com o clarinetista Ivan Sacerdote. 3. Belo Horizonte é absolutamente arrebatador.
Ou seja, Ney, Elza, Caetano, Zeca e todos os artistas que só se tornaram o que são porque tiveram esses caras ao lado um dia precisam comemorar o prêmio que a Academia Latina do Grammy teve a sensibilidade de honrar. Toninho Horta fez um álbum bem conceituado do início ao fim. Belo Horizonte é duplo, dividido em Belo, com as faixas de alto relevo de sua trajetória, como Durango Kid, Beijo Partido (com Lisa Ono), Pedra da Lua (com Joyce Moreno) e Céu de Brasília; e Horizonte, com composições novas como O Poder de Um Olhar (de Yuri Popoff), a magistral Magical Trumpets e Samba Sagrado (com a participação de Nivaldo Ornelas). A produção ficou com Toninho, André Dequeche e Yuri Popov e a Orquestra Fantasma é formada pelo piano de André Dequech, o baixo de Yuri Popoff, a flauta de Lena Horta, irmã de Toninho, e a bateria de Neném.
Os holofotes se voltaram para Toninho, com jornalistas à sua procura, convites para apresentações e audições triplicadas de suas músicas no Spotify. Seu primeiro show pós-Grammy será no próximo dia 6 de dezembro, no Bourbon Street, que vem respeitando as regras de distanciamento em seu protocolo, conforme checou a reportagem do Estadão. Antes da apresentação, a casa abre seu Jazz Café a partir das 16h, com um show acústico, e oferece um desconto para quem quiser acompanhar o show da noite. Outro destaque será a passagem de som. Toninho conversa com a plateia que estiver no Bourbon a partir das 19h e dez pessoas serão escolhidas por sorteio para assistir ao show de graça. Para o show, ele estará sozinho, sem a Orquestra Fantasma, e promete levar para vender não só os álbuns físicos de Belo Horizonte como um livro que traz a história da Orquestra Fantasma.
Ao falar com a reportagem na tarde de segunda, 23, Toninho estava eufórico. “Estou em êxtase. São 50 anos de trabalho. Só com a Orquestra Fantasma estou há mais de 40.” Sua guitarra tem uma voz particular, talvez a mais particular de todas na música brasileira, capaz de diluir com sua personalidade as próprias influências que poderiam pular à frente. Cabeça ao lado do baterista Robertinho Silva e do compositor Beto Guedes na construção da sonoridade do antológico Clube da Esquina, o álbum de 1972 feito com Milton Nascimento, Lô Borges e Beto Guedes, Toninho se tornou também um dos músicos mais copiados no jazz. E se alguém pensa aqui em Pat Metheny, sim, acertou.
A formação de sua sonoridade se dá justamente pela falta de uma formação de jazz. Toninho não aprendeu a ler música e, até hoje, não toca pensando em acordes, escalas, campos harmônicos, modulações e toda a carga que as academias estruturaram para que as pessoas a seguissem como um roteiro à terra prometida da improvisação e da harmonização. Hermeto Pascoal odeia essa pregação e a denuncia, chamando escolas renomadas dos Estados Unidos de indústria do jazz. Ou seja, não diga a Toninho que um tema está em ré maior com a segunda parte em fá sustenido menor que essa informação não fará falta. Ao tocar apenas por sensações, ele aprendeu a seguir apenas o ouvido.
A história começa aos 7 anos, com a mãe colocando LPs de jazz clássico na sala. Aos 9, pega um violão pela primeira vez e, aos 13, faz uma música usando como base Corcovado, de Jobim. Os acordes eram montados seguindo a beleza que as notas pressionadas pelos dedos produziam, mas um esquema particular foi sendo desenvolvido, metade por talento e um tanto por preguiça de tirar dos discos o que os outros guitarristas faziam, e suas progressões harmônicas já eram um salto fora dos padrões quando chegou ao Rio para tocar com Elis Regina e depois com Joyce, nos anos 70.
Há tanta curiosidade sobre sua forma de compor que ele resolveu lançar um curso, previsto para sair em dezembro, com o nome Harmonia Intuitiva. Não poderia ser diferente. “Quando falo para estudantes, digo o seguinte: estudem muito o que vocês devem estudar, mas reservem um tempo para serem vocês mesmos.”
Ele conta que no Japão, país onde pisou por 26 vezes, há dois instrumentistas que tocam exatamente como ele. Mas a comparação mais feita é com o guitarrista norte-americano Pat Metheny, 66 anos, vencedor de 20 Grammy Music Awards. Quem veio primeiro? Quem copiou quem? “Eu nasci primeiro”, ele diz, brincando, do alto de seus 71 anos. As linhas de pensamento, os timbres e a composição seguem realmente padrões similares. Seria tudo coincidência?
Toninho conheceu Pat no Brasil, em uma de suas vindas, em 1980. Uma aluna os apresentou e acabaram tocando juntos por um tempo. Ao ouvir o álbum de Pat, Brigth Size Life, de 1976, percebeu que Wes Montgomery era uma referência explícita, como para ele também, mas com uma diferença: “Ele tirou tudo do Wes Montgomery, eu não tirei nada”. Os dois guitarristas ficaram próximos, saíram juntos e, um dia, Toninho preparou um peixe para o convidado enquanto ouviam juntos o álbum Terra dos Pássaros, que o mineiro lançou em 1980. “Depois disso, percebi que as composições dele tinham umas coisas minhas.”
Em outra ocasião, Toninho comentou que estava pensando em estudar na Berklee College of Music, e sua sensação foi de que Pat ficou desconfortável. “Não vai não, você não precisa”, disse, desconversando. Se fazia o que fazia por instinto, o que seria se estudasse?
Se pensaram em fazer um disco juntos? Sim, Pat pensou. E quais seriam os músicos? Segundo Pat: ele, Toninho, Herbie Hancock ao piano, Wayne Shorter no sax, Charlie Haden no baixo e Naná Vasconcelos na percussão. Um time poderoso, mas que não vingou. Toninho seguiu fazendo a música em que acredita pelos próximos 40 anos ao lado do organismo que se tornou parceiro e cúmplice: a Orquestra Fantasma. Ao ouvi-los juntos é como se nem os simulacros de Pat Metheny pudessem assombrá-los.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.