Tribuna Ribeirão
Cultura

Gravadora relança o álbum ‘Rita Lee’

WIKIMEDIA/RITA LEE@VIVO RIO

Julio Maria
Agência Estado

Depois de deixar o Tutti Frutti, em 1978, Rita Lee se encontrou com Roberto de Carvalho para virar a chave em 1979, abrindo os horizon­tes de seu rock and roll parti­cular e criando seu primeiro álbum solo com “Mania de Você”. Uma cacetada pop que venderia 500 mil cópias.

No ano seguinte, 1980, fortalecidos pela fórmula das latinidades que Rita e Roberto criaram quase que como um gênero do próprio rock, lan­çaram “Rita Lee”, conhecido informalmente como “Lança Perfume”, e tudo que havia an­tes parecia ir pelos ares.

Tudo que estava ali em­placou: “Lança Perfume”, “Bem Me Quer”, “Baila Co­migo”, “Shangrilá”, “Caso Sé­rio”, “Nem Luxo Nem Lixo”, “João Ninguém” e “Ôrra Meu”. Quarenta anos depois, a gravadora Universal relança o álbum em LP.

A união de Rita Lee e Ro­berto de Carvalho começou na noite em que Ney Matogrosso levou o guitarrista a um jantar na casa da cantora e saiu de fininho ao vê-los dividindo o piano da sala. Isso há mais de 40 anos. Desde então, Rita, a melhor síntese de uma roquei­ra no país, preserva o casa­mento mais longevo do meio pop. Não teria algo aí contra o rock and roll das rebeldias e das inquietudes?

“Não há nada mais ro­ck’n’roll do que o tesão mú­tuo e estratosférico entre parceiros musicais que levam o que fazem na cama para o público. Pra você ter uma ideia, às vezes, certas dondo­cas cobram de mim que eu continue a pintar o cabelo de vermelho-menstruação me dizendo: ‘Você destruiu sua imagem/ marca’. Mas rebel­dia a gente fez a vida inteira. E quando você sente que o verdadeiro amor não acaba nunca – mas só melhora com o tempo – dane-se o rótulo.”

Essa é Rita, em uma rara resposta quase séria o tempo todo. A seu lado está Roberto de Carvalho, o homem que esculpiu as ideias roqueiras de Rita com tratamentos harmô­nicos modernos e entendeu também quando ela trouxe os boleros. Ele esbarra em algo forte: Rita, para alguns dos antigos fãs dos Mutantes e do Tutti Frutti, indispostos ao ouvi-la cantando “Lança Per­fume” com os teclados de Lin­coln Olivetti, poderia se tornar uma “diva de gueto”. Isso se só fizesse o que eles esperavam.

“Essa coisa da latinida­de é atribuída a mim, mas é muito dela também, basta lembrar de ‘Bandido Cora­zón’, um bolero composto por ela e gravado por Ney. O que estávamos fazendo em música era completamente orgânico. Estávamos vivendo um romance intenso, esta­mos até hoje, dentro de uma circunstância extremamente adversa de ditadura e prisões. Entretanto, o que brotava era uma música sensual, intensa­mente romântica, pra cima e, evidentemente, pop. So­ma-se a isso a percepção ób­via de todo mundo de que a vocação da Rita não era exa­tamente permanecer como diva de gueto. Ela era muito mais do que isto. E assim foi.”

O assunto volta para Rita e a faz falar sério mais uma vez. Afinal, por que o canto de um país em que os negros estão tão presentes na forma­ção musical não se deu por vozes negras? Não há roquei­ras negras, cantoras de MPB negras nem de bossa nova e a rainha do samba é uma bran­ca, Beth Carvalho.

Ela diz: “Essa pergunta também me faço… Inacredi­tável o Brasil ter sido um dos últimos países do mundo a abolir a escravidão, começa daí. Até hoje existe aqui um evidente racismo, coisa de quem ainda está espiritual­mente nas trevas. Assim como sabemos que há misóginos camuflados de ‘cavalheiros’ e que no fundo gostariam que as mulheres ficassem no tan­que. Uma negra com um p… vozeirão que veio ao mundo para apertar o ‘f…’ e se tornar rainha é Elza Soares. O Brasil está repleto de Elzas. O que lhes falta é justamente uma oportunidade, difícil com a visão tacanha de gravadoras, de panelinhas de rádios e de TVs. O bom é que agora, por meio da net, a gente fuça e acaba encontrando várias pé­rolas negras.”

E a conversa retorna ao disco produzido por Guto Graça Mello e a Roberto, que fala sobre Lincoln Olivetti. O tecladista que deu a lingua­gem pop aos anos 80, morto em 2015, era muitas vezes criticado por “pasteurizar” os álbuns de MPB e estava no time de “Lança Perfume”, o álbum. Ele e mais Mamão ou Picolé na bateria, Jamil Jo­anes no baixo, Robson Jorge na guitarra e, em “Ôrra Meu”, um outro baixista chamado Luis Maurício, que logo seria Lulu Santos.

Sobre Lincoln, Roberto diz: “Tocar com ele foi das melhores coisas que acon­teceram na minha vida. Um músico incrível e sem ego, as­sim como os outros que par­ticiparam. Rita e eu chegá­vamos com a música pronta, formatada, piano e ou violão e voz, apresentávamos aos mú­sicos já prontos para gravar e ficávamos passando e repas­sando até chegar no ponto de estar soando realmente legal. Era corpo e alma de banda. Não existiam arranjos pré estabelecidos. Tudo orgâni­co, tudo zero estresse. O alto astral estava presente e ficou registrado por todo o disco”.

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