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Presente em reprises na TV, atriz Julia Lemmertz analisa momento do País

Por Eliana Silva de Souza

Distante fisicamente de seu público, como tantos outros profissionais da sua área, por causa da pandemia, atualmente a atriz Julia Lemmertz pode ser vista em dois trabalhos antigos e que estão sendo reexibidos na Globo. Ela participou das novelas Fina Estampa (2011) e também de Novo Mundo (2017), das quais guarda boas lembranças. Mas, como aconteceu também com o meio cultural, ela não escapou da necessidade de se manter em isolamento social. A atriz passa esse tempo de distanciamento das pessoas por causa da covid-19 fora do centro urbano e junto a seus filhos, neto e marido.

“Estou na fronteira entre Rio e São Paulo, na Bocaina paulista, que é uma serra, logo depois de Bananal. Enfim, estou numa terrinha que comprei uns anos atrás e que eu sempre pensei, ‘ah, se tudo der errado, vou ter um lugarzinho em que eu possa plantar, ter água, para meus filhos, meu neto’, e, de repente, esse dia chegou”, diz a atriz, de forma enfática e meio incrédula que algo assim esteja acontecendo. “É muito louco, porque, quando percebemos, a gente estava aqui, plantando, cuidando da terra, dos filhos, do neto”, revela Julia, que se desculpa por não parar de falar, justificando estar distante de todos, em um lugar sem muitos recursos tecnológicos.

Em uma boa conversa via celular, a atriz, de 57 anos, demonstra sua satisfação em estar nessa sua terrinha, fazendo coisas que proporcionam momentos bons para ela e para a família. Para Julia, é um privilégio poder estar com a família, algo que muitos não conseguiram fazer, infelizmente. E ainda ter o que precisa para sua sobrevivência, sem a necessidade de sair da quarentena e se expor ao coronavírus. “Claro que a gente não está aqui de férias, é diferente vir para cá para passear, curtindo o local, claro que a gente também está curtindo, mas tem uma sensação estranha de um lugar que a gente tem de olhar para ele como um lugar de renovação, de recomeço. Sei lá o que pode acontecer com o mundo, do jeito que a coisa está, não sei se eu vou ter de morar aqui por tempo indefinido”, diz Julia, que revela sua preocupação com os que pouco têm. A atriz diz que não acredita que voltaremos ao normal, “que já não era tão normal assim”.

Julia afirma que está confuso para todo mundo, e não somente pela questão da covid-19, mas por toda essa onda de protestos contra o racismo e a favor de direitos sociais. Segundo ela, estávamos no meio de um processo catastrófico, tanto como sociedade como político.”É uma pandemia diferente das que tivemos no passado, porque essa é realmente global, atingiu a todos igualmente e nem todo mundo conseguiu lidar com ela igualmente.” Para ela, essa é a grande questão, pois expõe as nossas imensas desigualdades. Essa tomada de consciência de que do jeito que estava não dava mais para continuar é que a deixa animada. “É uma coisa que não tem só a ver com a pandemia, é uma crise total de valores, de ética, de repensar questões importantes, como o racismo. Estou aqui nesse lugar lindo, mas não consigo relaxar, estou fritando, pensando em como vamos lidar com questões da sobrevivência do mundo, para todo o mundo ”

Não há nada de positivo em uma pandemia tão mortal como essa, mas Julia entende que ela talvez traga algum tipo de mudança comportamental. “É um momento extraordinário; esse vírus não é sobre você, é sobre você e o outro, se você se protege e se está protegendo o outro, que não é só sua família, mas alguém que você não conhece. A hora é de realmente pensar que não se está sozinho no mundo, que existem milhares de outras pessoas que dependem de sua atitude para com o que está acontecendo”, diz Julia, enfatizando que “em algum momento você vai se tocar, vai perceber essa atitude que estão esperam de você”.

Julia destaca o fato de que há inúmeros trabalhadores que realmente precisam sair de casa, ganhar o dinheiro do dia para poder comer, pagar contas, sobreviver. “Somado a tudo isso, a gente não tem um poder público que ajude a população, muito pelo contrário. Mas eis que surge uma corrente de solidariedade extraordinária de pessoas, e o poder público ainda regulando 600 pratas pra gente que nem sequer consegue se cadastrar no negócio É tanto obstáculo, é humilhante!” E acrescenta que deseja que as pessoas acordem, que vejam o que está acontecendo, que tomem alguma atitude. “Porque não adianta a gente pensar que vai vir alguém, um salvador, um Messias, isso não existe. Existe, sim, cada um de nós tomando a responsabilidade para si e ver o que pode se fazer para ajudar os outros”, afirma.

A atriz ressalta que as pessoas parecem estar anestesiadas, pois não há espanto. Nem quando morre um jovem negro a cada 23 minutos no país. Reforça a ideia de violência bárbara, sem falar na violência do apartheid, de não haver condições socioeconômicas, da falta de direitos e oportunidades, e ainda estarmos sujeitos à uma violência subliminar, tão entranhada na sociedade a ponto de não sermos mais capazes de identificá-la. Ao adentrar a discussão, ela traz a responsabilidade para si: “É também hora de nós brancos, privilegiados, olharmos para dentro da gente e dizer, ‘pera aí, onde que eu estou nessa história? O que eu faço? Qual meu entendimento sobre isso’, e começar a ler para ter conhecimento dos fatos. Estou lendo agora livros incríveis, da Djamila Ribeiro e da Angela Davis”, revela. E se coloca como exemplo de quem demora a chegar no lugar de reconhecimento de sua própria ignorância, “a nossa profunda ignorância”, com o tema, achando que o fato de não ser preconceituoso já te faz antirracista. “Não mesmo”, diz.

Sobre o setor cultural no Brasil, Julia compara-o à areia movediça, em que há riscos de ir afundando conforme os movimentos. Em meio à pandemia, com espetáculos cancelados e teatros fechados, a atriz indica que haverá a necessidade de se repensar o setor, propor novas formas de se fazer cultura e não esperar que o governo faça algo. Para ela, a situação só melhorará quando quem estiver no comando entenda da área e tenha clareza em saber que a cultura brasileira gera não só prestígio, mas também dinheiro para o País. E completa: “a pandemia um dia vai passar, mas a questão é, depois que isso tudo acabar, a crise que se instaurou é tão grande, que para retomar o setor, que incentivo vai haver de uma economia quebrada para a cultura? É difícil, não consigo pensar o que vai ser, realmente acho que vamos sobreviver, mas a gente vai ter de se reinventar, fazer outras coisas”.

Voltando aos trabalhos anteriores, que estão sendo reexibidos pela Globo, Julia se recorda com carinho do papel na novela Fina Estampa, que mostrava a luta de uma mulher em engravidar. Diz que foi um momento especial, que se divertiu com os colegas de trabalho e conta que a bebezinha de 2 meses na época agora já tem 8 anos. “Era uma bebê muito fofa e, quando começou a gravar comigo, eu não conseguia pensar em outra coisa, só queria saber se estava tudo bem para ela, cuidar dela e, quando começou a reprisar, a mãe dela me mandou uma foto atual. Fiquei muito feliz.” Mas teve ainda sua personagem em Novo Mundo, que acaba de surgir nos capítulos que estão no ar. “Nossa, a Greta era uma alemã, lente de contato azul, sotaque, cabelos descoloridos, uma viúva negra, muito má mesmo.”

Família

Julia reservou ainda um tempo para falar do amor pelos pais, a atriz Lílian Lemmertz (1937-1986) e o poeta Lineu Dias (1927-2002). Ela revela que tem os dois bem próximos de si – “minha mãe e meu pai estão aqui comigo, exumei os dois, cremei e trouxe as cinzas deles pra cá e agora eles são duas árvores grandes”. Da mãe, diz que gostaria de ter tido mais tempo com ela, feito trabalhos juntas, “mas a vida é o que é, tudo tem seu tempo, seus caminhos”. Do pai, se recorda do companheirismo, da troca de ideias. “Perdi um olhar que não era só de pai, era crítico, instigante, olhar de contestar”.

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