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Há um lugar dentro de mim chamado Beth Carvalho

Sempre povoou minha cabeça o dia da morte da minha cantora preferida. Imaginava também que eu poderia partir antes dela. Criei uma alegria em mim, desde a infância, ouvindo Beth Carvalho. Creio que essa emoção me acompanhará até os momentos finais. Há um lugar dentro de mim chamado “Beth Carvalho”.

“Andança” foi seu primeiro sucesso em um festival de música em 1968. “Vi tanta areia, andei/ Da lua cheia, seu sei/ Uma saudade imensa”. Composição de Danilo Caymmi, Edmundo Souto e Pau­linho Tapajós. A andança de Beth terminou. Minhas pernas já não sambam como antes.

Cada um de seus discos foram dedicados especialmente a um ar­tista da música brasileira. O primeiro foi para Clementina de Jesus, a Rainha Quelé. Foi em uma estrada rural de Clementina, cidade onde passei toda a infância e adolescência, que ouvi a voz de Beth Carvalho pela primeira vez. Era “Coisinha do pai”, de Jorge Aragão, Almir e Luiz Carlos, que tocava no gravador do fusquinha vermelho de uma tia. Foi paixão à primeira escuta.

O samba é resistência. “Virada”, composta por Portela e Gil­per, era entoada nos grandiosos comícios do movimento Diretas Já em 1984.“E quem tem muito tá querendo mais/ E quem não tem tá no sufoco/ Vamos lá rapaziada/ Tá na hora da Virada/ Va­mos lá, do jogo”.
Declaradamente de esquerda, ao lado de justiça social e solidariedade, cantar samba sempre foi um ato político para Beth Carvalho. Eu acompanhava pela TV as falas entusias­madas de Brizola, Ulisses, Lula, Covas e Montoro. Fazia minha opção política ainda cedo.

A cada ano, alguns meses antes do carnaval, Simone, Gal e Beth, entre outros cantores, lançavam uma música para estourar no carna­val. “Aproveita hoje/ Porque a vida é uma só/O amanhã quem sabe/ Se é melhor ou se é pior”, Nei Lopes e Efson. O que uma letra dessa com pegada de sambão não faz na cabeça e no corpo de um moci­nho de 14 anos? A capa do disco “Suor no rosto”, onde está “Firme e forte”, a música citada, traz o rosto e a cabeleira vermelha de Beth Carvalho em meio a confetes e serpentinas. Pura fantasia.

João Pacífico compôs a pedido de Beth uma música caipira chamada “Alpendre da saudade”. A letra versa sobre a tristeza de um sitiante ao trocar sua simples vivenda por uma grande fazenda. O compositor relata em registro feito pelo Sesc, na coleção “A música brasileira deste século por seus autores e intérpretes”, que diante do pedido da cantora, não saberia fazer uma música alegre como aquelas gravadas por Beth. Esta insistiu. O resultado é uma das mais belas músicas do cancioneiro popular. Há um músico de Ribeirão que interpreta muito bem essa linda canção pelos bares da cidade: o amigo, violonista e cantor, Valdecir Belíssimo.

Nos anos 90, Beth gravou diversos compositores de samba de São Paulo. Nos anos 2000 fez trabalho semelhante gravando a Bahia. A cantora carioca sempre prezou por valorizar as composições e seus autores. “Silêncio, o sambista está dormindo/ Ele foi, mas foi sorrindo/ A notícia chegou quando anoiteceu”. Esta é “Silêncio no Bexiga” de Geraldo Filme. (Só não senti vontade de ouvir Beth Car­valho quando tive depressão).

Em um show na USP, em São Paulo, no Programa Bem Brasil da TV Cultura, ao perceber a proximidade com ela, invadi o palco entre uma música e outra, beijei-a e disse que a amava. “Todo mundo sabe disso/ Sou o samba popular/ Estou falando sério”, “Peso na balança”, de Wilson Moreira.

Escrevo essas linhas poucas horas após sua partida. Agora já não é mais dia 30. Já não é mais abril. Agora é maio, mês em que Elisa­beth Santos Leal de Carvalho nasceu. Ela faria 73 no próximo dia 5. Desejava participar de um show com amigos músicos para comemo­rar seu aniversário…

Beth deixou-nos em um período em que tudo parece ruir no país. No entanto, com seu canto, legou-nos força, coragem e ótima autoestima. Além disso, Beth Carvalho = alegria. Há um lugar em cada brasileiro chamado “Beth Carvalho”.

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